26 dezembro 2005

Sobre números, cotas, negros e medos.

(Texto solicitado pelo jornal "A Gazeta" por ocasião do 13 de maio, mas não publicado)
Sandro José da Silva

Sobre medos...
“Eu pediria meu boné e iria embora, ou seja: deixaria de escrever novelas. Porque acho que isso seria interferência demais no meu trabalho, e eu prefiro que continue estabelecido assim: meus personagens terão a raça (ou cor de pele), o caráter e a opção sexual que eu quiser, ou precisar(...)acho que os negros, entre os quais orgulhosamente me incluo, devem correr atrás do prejuízo, sim... mas na vida real.” [Aguinaldo Silva em debate sobre o sistema de cotas na televisão para a revista Bravo Brasil em Janeiro de 2002].
Diante deste artigo, o mosaico da indignação dos leitores não foi surpresa. Das 60 respostas online que obteve Aguinaldo Silva por sua opinião, a grande maioria lembra ao dramaturgo que a lei de abolição provocou os mesmos alarmes nas classes dirigentes. Outro chater afirma que “o lixo (sic) produzido pela televisão é um poderoso instrumento que cria a realidade no imaginário popular”. Outro ainda sentencia “Esse é o problema do Brasil: é tudo de cima para baixo, aqui não se conquistam as coisas, os benefícios, as garantias são dadas por uma canetada...” por fim e ao melhor estilo cordial brasileiro uma leitora afirma que “a cota para negros é um descaso com esta raça tão maravilhosa (sic), temos que nos conscientizar que somos todos iguais perante DEUS(sic), e que qualquer um de nós podemos entrar e sair em qualquer ambiente, desde que sejamos boas pessoas (sic)”...

Sobre negros e números
Vinculou-se nos jornais que no Censo de 1991, 42,6% da população se dizia “parda” e hoje, esse índice é de 39%. A queda neste número mostra provavelmente que mais pessoas deixam de lado o medo da identificação e buscam construir seu pertencimento étnico. Na mesma direção mais pessoas se assumem agora como negras, pois dos 5% de negros do censo de 1991, o número pulou para 6,2% do censo de 2001. Aguinaldo Silva continua O leitor estaria se perguntando; somos apenas 10 milhões de negros em todo o país? E eles acham que a televisão privilegia os (falsos) brancos, em detrimento dos únicos negros que eles reconhecem nesse país de raças mescladas, misturadas, ou seja, os puros e retintos. É deles a idéia da lei de cotas: no elenco de uma novela, teria de haver sempre lugar para uma determinada percentagem desses que eles consideram negros.

Sobre negros e medos
A busca pelo espelho identitário já nos legou muitas teorias eugênicas e racistas, democráticas e liberais de acento igualitário, mas sem memória histórica. Como se vê nossa “democracia racial” anda mesmo mal das pernas e da cabeça, mas há indicadores públicos sobre os debates étnicos no Brasil. Creio que o que está em jogo não é exatamente se os negros participarem ou não de novelas, escolas, universidade e etc..., segundo o modelo proporcional, mas o fato de constituírem uma demanda política diante da hegemonia pseudoigualitário do Estado brasileiro há muito tempo. Concomitante a outros movimentos por direitos (mulheres, índios, ciganos, deficientes), negros vem discutindo de longa data sua participação diferenciada na sociedade e nos fazendo pensar nos desafios da nova sociedade brasileira. O debate, ainda que biológico, é político porque o conceito de etnicidade aponta para outros universos culturais e identitários que recusam a simplicidade do modelo racista/eugenista. Mesmo a cidadania que herdamos, pautada por valores como igualdade e liberdade sente-se acanhada em incluir a diferença como constitutiva de uma nova ordem social indagadora e inclusiva. Os caminhos que trilhamos até o momento apontam a supressão das diferenças mais por medo do que por espírito democrático. A questão não é de números, mas de percepção da diferença diante de um Estado que se quer igual.

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