12 janeiro 2006

Ticumbi: Guerra e Drama Social entre os negros no Espírito Santo.

Ciclo festivo do Ticumbi - janeiro, Itaúnas ES (Brasil)

Sandro José da Silva

Guerras, espadas, combatentes, reis, nações, mouros e cristãos. Estes são alguns dos elementos que preenchem e dão sentido a dramaticidade do Ticumbi, articulados pelo desafio que tenciona o teatro, mas também funciona como arquitetura e anfiteatro onde ressoam as falas, os corpos, os tempos e os espaços.
A própria estrutura do ticumbi revelam dinâmicas específicas. Os reis são o eixo da dramaticidade. Eles se postam cada um em seu reino: mouro e cristão que irão se enfrentar até a conversão dos primeiros. A fala ecoa de um reino a outro por meio dos embaixadores ou secretários que se comportam e agem como “bobos da corte” prontos a desafiar verbalmente uma autoridade como um rei com insultos, falácias, jocosidade guardando sua fidelidade à origem. Os reis são representados pelos embaixadores que percorrem “longas distâncias” mostrando fidelidade e lealdade ao seu senhor.
Entre um recado e outro há um corredor de cantores que recriam os reinos a serem atravessados. Os problemas advindos do monocultivo de eucalipto que alteraram profundamente a perspectiva de vida de das comunidades do norte do Espírito Santo são revividos recentemente como uma forma específica de demarcar fronteiras sociais e recusar o modo de vida centrado no capital internacional e na diluição das fronteiras da identidade. A conversão dos mouros é um diálogo tenso, réplica dos cotidianos confrontos jurídicos, semânticos e econômicos com o poder destrutivo da Aracruz Celulose, uma tentativa de se apropriar e recriar a lógica desta dominação via a arte e a estética.

“Alevanta, preto, alevanta!”
Mas o ticumbi tem outra face de muita dramaticidade que fica reduzida à audiência local. Trata-se das visitas feitas nas casas dos moradores locais. Amigos, companheiros de trabalho, compadres e comadres se prostram diante da visita de reis, dos rodopios, dos desafios e das honras dispensadas aquela casa. A tradição combina aqui vários tempos históricos oriundos da experiência coletiva e do contar junto.
O relato visual da festa em janeiro de 2004 (veja algumas fotos neste blog) demonstra que a luta pela conversão dos pagãos (reis de Bamba) pelos cristãos (reis de Congo) serve de teatro dramático por meio do qual questões contemporâneas da comunidade de negros de Conceição da Barra são tratadas publicamente. A memória em constante movimento atualiza conteúdos e permite compreender a gramática das relações sociais. Assim, as letras das músicas embora mantenham a estrutura da conversão, nos permitem apreciar as lutas contemporâneas pela identidade negra, políticas públicas, reconhecimento da cultura local, tratadas com humor, irreverência e arte. O Ticumbi, apesar de ser tratado como manifestação folclórica – heranças e sobrevivências dos escravos -, revela estruturas de poder locais e tensões próprias do momento em que as comunidades negras recontextualizam suas identidades e lutam por direitos territoriais.

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