28 maio 2007

Direitos Culturalmente Diferenciados, Antropologia e Ética




Luís Roberto Cardoso de Oliveira

Presidente
Associação Brasileira de Antropologia

Uma verdadeira campanha de má-fé para disseminação da ignorância
obscurantista tem se espalhado por periódicos do Sul do Brasil,
sobretudo, articulando de modo negativo e leviano, povos indígenas,
antropólogos e questão fundiária. A Constituição Brasileira de 1988
reconheceu, por diversos de seus dispositivos, o caráter multiétnico da
sociedade brasileira e os direitos coletivos à terra de coletividades
culturalmente diferenciadas, em especial dos povos indígenas e de
comunidades quilombolas. Por meio de legislação posterior, de normas
administrativas, e ainda pela mais recente da ratificação pelo governo
brasileiro da Convenção 169 sobre Populações Tribais em Estados
Nacionais da Organização Internacional do Trabalho, esses direitos foram
sedimentados e transformados em matéria de ação administrativa do Estado
no Brasil, sendo monitorado e supervisionado pelo Ministério Público
Federal. No caso dos povos indígenas, cuja presença na América
pré-existe qualquer estruturação em Estados Nacionais, com
estabelecimento de fronteiras, línguas e documentos "nacionais",a
agência do Estado brasileiro responsável pelo reconhecimento fundiário
das terras indígenas é a Fundação Nacional do Índio.

Esse conjunto de disposições jurídico-administrativas previu que a parte
inicialdesse processo de regularização fundiária fosse objeto do
trabalho técnico-pericial do antropólogo, profissional no Brasil formado
apenas ao nível de mestrado e doutorado, em cursos específicos,
reconhecidos pelas instituiçõesde fomento à pós-graduação, como o
Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq) e a
Fundação Coordenação de Aperfeiçoamentodo Pessoal do Ensino Superior
(CAPES), cujo criterioso trabalho de avaliaçãoqualifica e certifica
alguns cursos apenas.A perícia antropológica é um trabalho de caráter
técnico, que demandasólidosconhecimentos científicos quanto aos
princípios teóricos da disciplina que o embasa, assente na longa
tradição da Antropologia no estudo de sociedades e povos não ocidentais,
que tem viabilizado uma compreensão adequada, para além dos preconceitos
do senso comum e dos interesses materiais comezinhos, de seus costumes e
modos de vida. Mais que isso, o exercício da Antropologia, e em especial
os trabalhos de perícia antropológica, demandam um comprometimento
ético-moral profundo com os povos de cujos modos de vida nos tornamos
íntimos ao longo de nosso investimento, seja para fins acadêmicos ou
técnicos, em especial, no sentido de levar a sério o seu ponto de vista
e suas tradições, tratar o tema e o grupo com honestidade, e assumir
responsabilidades, para com o grupo, sobre o resultado de seu trabalho.

Assim, a produção da verdade científica em Antropologia, isso estando
consignado em numerosos códigos de ética de associações como a nossa,
passa pelo ponto de vista daqueles com que estudamos e convivemos, sendo
nosso papel traduzir com objetividade esse ponto de vista. São os
conteúdos teóricos da disciplina e o método científico que possibilitam
que o imperativo ético se combine com a visão da imparcialidade
demandada pelo Direito, o que tem feito que com freqüência se demande o
trabalho pericial do antropólogo na esfera jurídica, em especial na ação
do Ministério Público Federal e na atenção a demandas da magistratura.

As matérias publicadas e disseminadas na imprensa escrita, em torno da
identificação da terra indígena Morro dos Cavalos, em Santa Catarina, ou
acerca da identificação de terras de quilombos revelam não apenas o
desconhecimento sobre a pesquisa e a perícia antropológica. Colocam-se
na contramão da ação legalmente definida dos órgãos públicos,
demonstrando má-fé no imperativo da informação e do esclarecimento do
grande público quanto aos direitos indígenas e de quilombolas. Assim
agindo, esse segmento da imprensa demonstra a violência de seu poder, ao
praticar o exercício unilateral da crítica, sem dar espaço à voz dos
antropólogos reconhecendo-lhes o direito de resposta nesses e em
numerosos casos de que esses profissionais tem sido objeto,
colocando-nos a questão: há algum o princípio ético-moral no trabalho
desse tipo de imprensa que traveste interesses específicos e econômicos
em acusações regadas a um nacionalismo ralo e a tons desrespeitosos e
superficiais?

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