02 outubro 2007

Fome no Sapê do Norte

Sandro José da Silva
Antropólogo e professor na UFES, coordena o projeto territórios quilombolas no estado.

No dia 29 de setembro de 2007, o Projeto Quilombolas da UFES esteve na comunidade de são Jorge no município de São Mateus (ES) para celebrar o dia de São Cosme e Damião. Uma das filhas da família dos Valentim nos disse desesperada que aqueles doces seriam a única refeição do dia. A família Valentim já havia perdido três crianças por envenenamento, perderam as terras tradicionais que ocupavam e vivem do trabalho semi-escravo, configurando uma situação brutal de violação dos Direitos Humanos.
Há quatro anos o Projeto vem acompanhando as comunidades quilombolas do Sapê do Norte, no estado do Espírito Santo. Nestes quatro anos observamos o agravamento das condições de segurança alimentar das comunidades, devido especificamente à falta de terras e financiamento para a agricultura. Este quadro de fome nem sempre foi assim.
O empobrecimento das dezenas de famílias é indicado por elas mesmas como a redução drástica do acesso aos recursos naturais para o seu desenvolvimento material e cultural. O exemplo da família Valentim na Comunidade de São Jorge é exemplar. As memórias dos filhos e netos apontam esta família como um exemplo da ocupação tradicional das comunidades quilombolas na região.
Os mais velhos, ligados à organização política e econômica, eram também os detentores dos saberes oriundos das práticas religiosas e do calendário festivo. As parcelas de terras por eles ocupadas foram o resultado da ocupação tradicional por décadas, que reuniam terras agricultadas, terras reservadas à ampliação da família, espaços reservados à caça e coleta e terras reservadas aos cultos religiosos.
Os Valentim, como eram conhecidos no Sapê do Norte, tinham uma identidade ligada a abundância e a fartura de recursos naturais. Os pomares, os animais “criados à solta”, os rios e córregos piscosos garantiam a reprodução do patrimônio cultural, bem como permitia aos parentes a possibilidade de trabalhar e se apropriar do resultado deste trabalho.
Falar nos Valentim era falar num espaço de celebração da vida no Sapê do Norte. Os depoimentos dos mais velhos em outras comunidades lembram dos Valentim como grandes festeiros, que ao final das colheitas ou obedecendo ao calendário agrícola, animavam as comunidades com festas e bailes onde dezenas participavam.
Mas, este não é a situação atual. As transformações impostas pela agronegócio no estado do Espírito Santo produziram um empobrecimento brutal da comunidade de São Jorge e de outras dezenas no estado. Em quatro anos de trabalho na localidade observamos a exclusão alucinante das dezenas de crianças e mulheres, que perdem todos os dias a razão de ser. A expectativa de vida dos quilombolas ficou reduzida ao dia-a-dia, que observam famintos.
Os maridos, após extenuarem-se nas carvoarias agora fechadas pela insanidade do agronegócio e conivência dos órgãos estaduais, comemoram os cinqüenta reais semanais que “ganham” pelos “bicos” incertos nas lavouras de fruticultura dos posseiros de suas terras. A perseguição judicial faz das identidades quilombolas um refúgio incerto, aviltando o direito à organização e eliminando o direito de organização. A discriminação e o empobrecimento sistemático vão eliminando rapidamente as comunidades.
Em pesquisa recente feita pela KOINONIA a situação de exclusão dos negros no Espírito Santo ficou explícita. Em Conceição da Barra, enquanto um homem branco ganha em média R$347,68, uma mulher negra ganha R$91,71! Em São Mateus a situação é semelhante: enquanto um homem branco ganha em média R$659,21, uma mulher negra ganha R$123,00! Este cenário urbano se agrava no campo.
A alegria em receber os viajantes nos tempos em que são Jorge era uma passagem das tropas que subiam o rio Cricaré para o interior, contrasta hoje com a timidez e a vergonha de não ter o que oferecer a quem passa por ali. O passado recente de abundância foi substituído pela fome que segue fazendo vítimas em pelo menos quatro grandes grupos familiares na Comunidade de São Jorge.
A fome desmobiliza as vontades em São Jorge e amplia a expropriação dos direitos das comunidades quilombolas, cada dia mais entregues à situações de semi-escravidão. O cenário de racismo contrasta com as dezenas de políticas e secretarias criadas pelo governo federal sem que um real chegue a São Jorge. O governo estadual já fez sua opção pelo agronegócio, recusando a reconhecer ao menos a existência dos quilombolas e criando estratégias de desmobilização com rodadas de "conciliação". Senadores, deputados estaduais e federais capixabas pautam-se pela desinformação, não escondendo seu racismo nas declarações à sociedade.
O Ministério Público já esteve na comunidade, mas ainda não conseguiu responsabilizar ninguém, tornando os quilombolas no Espírito Santo ainda mais “invisíveis”. O movimento "Paz no Campo" vem semeando a violência e o racismo, sem que as autoridades usem a lei para coibir estas ações. A cada dia o desejo do agronegócio se consolida: expulsar ou matar lentamente as comunidades quilombolas de suas terras, com a nossa conivência.

Nenhum comentário: