21 abril 2009

Desqualificando a democracia


Surpreende a matéria publicada no jornal O Globo do dia 22 de março com o título "Lavoura Arcaica" (Revista O Globo, nº 243). Não, a matéria é ruim mesmo. Preconceituosa, desinformada e demonstra o tipo de formação que o jornalismo que hoje vem se aceitando nas redações que tem por "licença pública" informar a população. Falando de forma distraída de um Brasil arcaico, ela na verdade descaracteriza uma luta profundamente desigual. Ademais, é notória a perseguição da Rede Globo ao Brasil que tem voz própria, como foi o caso das comunidades de São Francisco do Paraguassu (BA) que acirraram a violência. Há muitas coisas que a gente não vê por aqui.
A matéria trata de um grupo de senhoras "remanescentes de um extinto quilombo" – as "congas" – que vivem "isoladas" do mundo, "que vivem como no século 19": não sabem ler e escrever, não têm filhos, bens e outras coisas civilizadas e reproduzem a "cultura escravista, andando em fila indiana". Num "mundo sem fronteiras", argumenta a matéria, elas estão ali quase por acaso, não fosse a caridade dos vizinhos e a sensibilidade um bondoso dono de terras que as deixa morarem em seus domínios. Na matéria, congas tem aspas, dono de terras sensibilizado, não.
Uma fresta na reportagem nos leva a outras interrogações: elas eram donas de grande parte das terras da vizinhança que foram tomadas pelo fazendeiro local. Ah, enfim, estas senhoras têm uma história: a de milhares de comunidades negras no Brasil que tiveram e têm suas terras usurpadas pela mentalidade ruralista ou especulação imobiliária. O governo Lula editou o decreto 4887 em 2003 e de lá para cá o DEM tenta derrubá-lo alegando inconstitucionalidade. O governo parece não se importar mais com o decreto que lhe rendeu parte dos votos para a reeleição, mas agora deve lhe custar muito politicamente.

Genocídio e etnocídio
A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Fundação Cultural Palmares e o Incra, responsáveis por levar adiante o lema "um país de todos" para os quilombolas, estão paralisados em todo o país. Ações locais dos ruralistas, dos partidos conservadores, de nacionalistas de plantão, impedem o andamento de processos constitucionalmente estabelecidos. Soma-se a isto o corte em verbas que transformou a promessa de terra e assistência rural para as comunidades negras rurais no maior blefe, depois do confisco da poupança por Collor.
Todas as vezes que os Estados nacionais ou os grupos que o controlam querem desclassificar uma determinada população ou pleito político-jurídico, classificam-na como atrasada, isolada, primitiva, em conflito e, neste caso, "arcaico", o passado que se coloca inadequadamente no presente. Ao colocá-las fora da história destes interesses, também as colocam fora do direito que lhes assiste. Cria-se então um ambiente em que estas populações não têm o direito de dizer a sua identidade, os direitos a ela associados, de existir e se reproduzir socialmente como figura no artigo 261 da Constituição Federal.
Instituído pela própria Constituição Federal, o direito dos quilombolas é colocado sob suspeita por uma mentalidade que é remanescente do principal instrumento da sociedade escravista no Brasil: a violência. A matéria coincide com a pressão pela extinção do decreto 4887, as congas que são seis, o terreno onde elas ocupam que é de 200 m2 o sonho do DEM e do CNA: "Terras que estejam ocupando". Irônico, mas um passo importante para a continuidade do genocídio e etnocídio no Brasil. Hoje são os direitos quilombolas e indígenas que são questionados. E amanhã quais serão?

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