16 outubro 2009

Memória e imagem

Itueta foi assim.
sandro silva

Recentemente lançado na UFES, o filme “Estação Itueta” de Bianca Sperandio, aluna do curso de Ciências Sociais da UFES, me deixou incomodado. A partir de uma pesquisa/intervenção de um projeto de extensão coordenado pela antropóloga Celeste Ciccarone e inspirado em pesquisas do professor Mário Hélio, o filme faz a cadeira do cinema ficar pequena. Compartilhando imagens próprias com as colhidas entre os moradores da extinta cidade de Itueta MG, Bianca coloca-nos entre passado, o presente e algum lugar entre estes dois lugares.
O filme inventou Itueta. Não estou brincando. O que existe agora de Itueta é o filme. Os escombros da cidade estão debaixo da água da hidrelétrica. O que sobrou foi o desejo de criar Itueta em outro lugar. Mas, também esquecer Itueta é cada vez mais necessário. Pelo menos aquela em que se morou e se sonhou. O que resta aos moradores é este desafio de olhar continuamente para os trechos do filme, as partes não editadas, o copião e procurar nelas algum sentido para a vida de hoje.
Soa como uma tragédia. Talvez algo parecido com o fim de uma guerra: moradores andando pelas ruas e tentando se reconhecerem, como se viam antes? Antes eram Itueta? O que eram? Poderiam usar seus nomes novamente? Tudo destruído, tudo novo, tudo inacabado. Tudo por fazer. E a memória que quer refazer o passado amealha espectros digitais. É como ganhar uma casa nova que não tem chão nem paredes para pendurar quadros. Itueta é uma pintura inacabada que nunca vai se completar. Os moradores de agora e depois sempre vão adicionar um detalhe, sempre vão concordar com a memória de alguém que queira colocar mais um tom aos já existentes.
Um personagem/sujeito no filme antecipou o que para muitos estava encoberto pelo cotidiano. Ele narra com sua câmera caseira a fisionomia do que para ele foi Itueta. Parado em frente a uma casa que foi sua, outra de um colega, a igreja, o altar percorrido com a câmera como se fosse alisar as curvas do prédio. Ele repete: “antes as pessoas achavam estranho: filmar o que ia ser destruído. Mas hoje podem ver o que eu queria dizer”. Hoje gostaríamos de mais imagens. Talvez um ângulo inédito, inusitado. E se pudéssemos filmar desde o começo? Por que não fizemos isso antes? É fácil cair na tentação das imagens.
Esta é a inquietude de quem agora quer narrar Itueta. Alisar cada cena com as mãos que podem lembrar. Evocar em cada canto, quem pode lembrar? Reter a experiência na mão, segurá-la e não deixar escapar. As imagens de Itueta são como as palavras para o poeta: elas são precisas e um abismo.
No lugar entre a imagem e a memória outro espaço ganha sentido: tecer a experiência. Às gerações mais novas não sobrou muita memória e quase nenhuma imagem. Eles tem agora que se contentar em produzir experiências como uma árvore produz flores ao saber que vai morrer. Imagens de si sem que a sombra de Itueta se levante demais, sem que a Nova Itueta a encubra demais. Este é o desafio dos novos: Lutar com a memória e com as imagens, uma luta que se perdeu.
Grande parte do que se diz de Itueta está apenas nas imagens. Em poucos anos a memória dos moradores não vai mais valer. Apenas as imagens, o som, as lacunas. Itueta desapareceu, como vai desaparecer os moradores que se lembram dela e contam suas histórias sobrepostas às imagens. Mas estes também vão desaparecer. Vai ficar apenas o filme. Aos poucos ela vai desaparecendo e em seu lugar ficarão apenas as imagens.

Nenhum comentário: