10 janeiro 2010

Sorriso amarelo

Dez anos que parecem cem: as relações raciais no Brasil.
Sandro Silva[1]
(publicado no Relatório 2009 - Rede Social de Justiça e Direitos Humanos)

“Seria melhor criar uma lei para exportar os pele escura de volta pra Angola. Já que os ancestrais deles foram forçados a vir a morar no Brasil, nada mais justo devolver a cidadania original deles, já que eles sofrem muito por aqui. Na África eles não serão mais coitadinhos”. [opinião de internauta após a aprovação do Estatuto de Igualdade Racial em setembro de 2009]
O grande avanço é que ele [Estatuto da Igualdade Racial] não vai gerar conflito. [Ministro Edson Santos, após a aprovação do Estatuto de Igualdade Racial em setembro de 2009]

Estas duas formas de considerar as relações raciais no Brasil sintetizam o imaginário sobre o tema e, embora recentes, são contemporâneas do debate do século XIX. A primeira afirmação, abertamente racista, e a segunda, um exemplo de tutela dos Direitos Humanos, se encontram na produção do racismo à brasileira que pretende encobrir a diferença. Ambas são formas de recusar o direito à diferença a partir de uma perspectiva colonial de estado que fundamentando-se na igualdade universalista, reservou historicamente à determinados grupos as políticas públicas no país. O que deve chamar a atenção não é a opinião dos setores conservadores da sociedade, mas a forma pela qual o Estado, tomando para si o papel de redistribuidor de recursos coletivos, mostra-se incapaz de políticas distributivas, como no caso das populações que se diferenciam por raça e etnia.
Minha perspectiva antropológica procura compreender como determinados grupos e indivíduos constroem seus modos de agir e de pensar. As palavras, os conceitos e as práticas são para a antropologia, símbolos produzidos coletivamente em constante disputa, pois são o resultado destas formas diferenciadas de compreender a realidade. Assim, as “relações raciais” serão compreendidas aqui como um campo de disputa entre diferentes atores e não como um fato objetivo. Se a ciência moderna desnaturalizou as relações raciais – afirmando que a raça biológica não existe -, parte da sociedade se compraz em naturalizar a igualdade – afirmando que todos são iguais, mesmo que os números da desigualdade continuem decepcionando qualquer perspectiva dos Direitos Humanos. O objetivo do debate sobre a questão racial no país se compraz em verificar se há ou não raça, desviando o foco dos efeitos da discriminação racial, evidente e já demonstrada em inúmeros estudos. Erroneamente têm-se afirmado que se não existe racismo no país, não há porque assegurar políticas específicas contra as marcas do racismo. Por outro lado, os movimentos sociais têm constantemente afirmado que se a raça é uma construção social, seus efeitos danosos podem ser revertidos por políticas afirmativas em função de uma sociedade realmente igualitária. Trata-se de compreender tais políticas como uma forma de reconhecimento da própria biografia dos Direitos Humanos que, saindo do universalismo difuso, volta-se em ações concretas com sujeitos e situações históricas concretas.
Meu texto tem por objetivo apresentar dois momentos, nos quais a raça se tornou discussão central no pensamento social brasileiro. O primeiro momento tem relação com a inexistência de Políticas públicas pós-abolição. O segundo coincide com as formas contemporâneas de inscrição da raça nas Políticas públicas no Brasil. Tomo como paradigma, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, ocorrido em setembro de 2009, pois seu trâmite, invisível por cerca de dez anos, e sua aprovação, comemorada com um sorriso governamental amarelo, é um símbolo de como as políticas distributivas são reapropriadas pelo jogo político entre governo, estado e grupos de interesse. Concluo, indicando em primeiro lugar a incapacidade emancipatória da elite brasileira e a sua falta de um projeto de cidadania multicultural que não seja folclórica e em segundo lugar a vitalidade dos movimentos sociais em garantir espaços importantes de representação e agendas voltadas para ações emancipatórias no país.

Um breve esboço da questão racial no Brasil
As concepções sobre raça no Brasil iniciam-se com as pressões internacionais pela modernização. A proibição do tráfico, a Lei de Terras, a Lei do Ventre Livre, a Lei dos Sexagenários e a Abolição são faces de uma mesma moeda, por meio da qual, o país negociou sua noção de povo/nação com os interesses internos e internacionais. A substituição da mão-de-obra escravizada nas lavouras no século XIX representou a oportunidade para os parlamentares inscreverem a relação entre as políticas públicas e a racialização da vida social de forma singular. Juntamente com uma perspectiva científica dos perigos da mestiçagem, o argumento era simples e direto: Para criar uma nação seria necessário trocar o sangue miscigenado da população, vista como preguiçosa e indolente, pelo trabalho remunerado de trabalhadores livres. Duas alternativas foram, então, esboçadas pelo Estado. Na primeira alternativa, encher-se-iam navios com africanos e os devolveriam para a África. Em uma segunda possibilidade, a política de incentivos à imigração européia poria um fim aos traços genéticos nocivos da população miscigenada pela via dos intercasamentos e apagamento do traço – negro e indígena -, considerado motivo do atraso nacional. Como se vê a racialização das relações sociais foi em grande medida uma ação governamental.
Enquanto a primeira solução eugênica não foi colocada em prática oficialmente, a segunda logrou entrar para o rol dos esforços de governo em diversas ações, por meio das quais, foram reunidos incentivos à imigração e à formação de colônias de europeus no Brasil. As teorias de Darwin sobre a sobrevivência do mais apto ganharam neste momento uma “leitura social” que considerava natural a eliminação do traço miscigenado, visto como mais fraco, mediante a introdução do sangue “mais forte” de colonizadores europeus. O darwinismo social ganhou certamente uma versão singular no caso brasileiro, visto que, a população oriunda da escravidão e a população indígena não encontraram lugar nas políticas públicas, pois eram vistos como inferiores que iriam desaparecer “naturalmente” com o tempo! A perspectiva contratual de nação, que tornara-se hegemônica, pressupunha sujeitos livres, iguais e brancos, a despeito de suas desigualdades. Mas a organização política dos escravizados e outras organizações pró-abolição teciam, há tempos, o conceito de liberdade no Atlântico Negro mediante organizações civis e religiosas recolocando a questão da inserção da população negra no país e fazendo colidir vários projetos de liberdade, nação e cidadania silenciados pelos eugenistas.
O pós-abolição representou para a população oriunda da escravização o silenciamento em termos de políticas públicas e a reinvenção do lugar da raça no cenário da constituição da nação. Com Getúlio Vargas, o tema da racialização das relações sociais ganha novamente destaque pela valorização do país como mestiço. Anos depois mediante restrições às populações consideradas italianas e alemãs durante a segunda Guerra Mundial e a construção de um discurso que pretendeu incluir a população, antes vista como miscigenada e degenerada, como “o nacional”. Por outro lado, o Estado fortalecia a imagem de nação gerada com a República favorecendo, pelo Decreto N.º 7967, de 1945, “a necessidade de preservar e desenvolver, na condição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia”. O reflexo no Brasil da re-etnização dos grupos europeus levou à hegemonia da imagem da sociedade miscigenada e, conseqüentemente, da invisibilização da presença negra e a romantização das populações indígenas no país. Mas, apesar do dia da Raça, da Aquarela do Brasil e de Casa Grande e Senzala, continuávamos às voltas com as barreiras sócio-econômicas às populações negras e indígenas e sua invisibilização dentro da “questão nacional”.

A raça nas políticas de estado.
A imagem de que o Brasil é constituído de uma amálgama de tipos sanguíneos, de combinações e de arranjos biológicos que impossibilitam a distinção entre negros, índios e brancos é um argumento tão sedutor dos conservadores quanto falso. O argumento da sociedade miscigenada contempla de forma diferenciada os grupos dela formadora. Enquanto a diferenciação étnica celebrada pelas culturas européias e orientais é sinônimo de paz social, as reivindicações de grupos negros e indígenas são tratadas como a sua incapacidade de se adequarem à nação brasileira. Dessa forma, a recusa dos efeitos da racialização promovida pelo estado é uma forma de violência contra as populações que foram objeto de discriminação, uma vez que para estes trata-se de reverter o caráter genocida e etnocida presente nas teses sobre a formação do país e da nação.
Neste sentido contemporâneo, “raça” tem operado como categoria sociológica e política que permite aos movimentos sociais compreenderem as formas de inscrição da diferença, bem como identificar, por meio de instrumentos objetivos as desigualdades inscritas no pertencimento social, étnico, de classe e de gênero. Do ponto de vista político, recusar a construção da diferença é uma forma de fixar conteúdos culturais em uma perspectiva arcaica que mantém uma imagem petrificada dos negros e dos indígenas no Brasil, vistos ora como escravos ou indolentes, ora como sujeitos incapazes de organizar suas demandas específicas. Jogar a demanda por direitos raciais no grande caldeirão da miscigenação foi uma forma da hegemonia racista operar em silêncio e de se nutrir das políticas de tutela do Estado. O processo de racialização eliminou a discussão sobre a cidadania no país, pois tratou a diferença social, econômica e política como efeitos da raça sobre a formação da nação e ao mesmo tempo as reivindicações por igualdade como ações contra a nação.
Ao inscrever o escravismo como espaço político superado pelas políticas de integração/assimilação de Estado, a hegemonia do projeto de branqueamento coloca-se como uma forma de superação da raça como espaço de reivindicação política. Esta junção, que naturalizou a branquitude e a negritude, tornou-se hegemônica, na medida em que colocou as Políticas públicas como forma de superação das desigualdades sociais, quando, na verdade, elas criaram uma solução conformista, que abrigou a expressão conservadora de grupos hegemônicos e a reivindicação de grupos raciais discriminados como se eles estivessem numa arena igualitária de disputa.
A ideologia da miscigenação, a Lei Afonso Arinos e o Estatuto da Igualdade Racial, aprovado recentemente, não conseguem ser uma resposta a uma pergunta simples: por que as populações negras e indígenas, em sua maioria, vivem em condições econômicas e educacionais inferiores aos brancos? Em primeiro lugar, porque cotas raciais nas Universidades, embora um sucesso em mais de setenta Universidades brasileiras, ainda são vistas como uma ofensa aos projetos de reprodução da elite brasileira e, em segundo lugar, porque as cotas ameaçam as formas tutelares em que se quer manter a população negra e indígena. É realmente um enigma como a democracia é pensada pelos intelectuais anti-cotas, ou seja, uma cidadania sem cidadãos, já que as elites não deram até o momento uma resposta política e econômica, muito menos apresentaram um plano de superação da desigualdade que não seja a tutela ou a subalternização de milhões de pessoas.

As políticas de racialização do estado são políticas de subalternização.
Com muita euforia e sem efeito prático algum, o Estatuto da Igualdade Racial foi aprovado e aclamado como um grande feito. A aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, depois de mais de dez anos de debates, revela que ele foi transformado em moeda de troca do jogo partidário. Ou seja, o Estatuto da Igualdade Racial transformou um capítulo importante da Constituição, a autodeterminação, em mais uma forma de tutela distanciando-se da perspectiva emancipatória. Este caminho não irá colocar um fim às reivindicações das populações discriminadas étnica e racialmente, pois o desejo de liberdade é uma raiz funda que está latente no cotidiano desta população.
Várias propostas de políticas de reconhecimento da questão racial, bem como sua superação, estão ancoradas em propostas emancipatórias. Reconhecendo as relações de classe na definição das desigualdades históricas no Brasil, tais propostas pretendem emancipar os sujeitos da linguagem funcional que o acento nas Políticas públicas distributivas centradas na classe almeja. A definição dos conflitos por acesso às políticas públicas como “conflito de classe” não tem sido capaz de traduzir as diferenças de raça e gênero. Por outro lado o universalismo da igualdade não pode se transformar em uma barreira à inteligibilidade das maneiras pelas quais os diferentes grupos sociais expressam sua visão sobre o futuro e sobre o presente e, de forma crítica, sobre seu passado na formulação de sua perspectiva de ação.
Durante muito tempo e em diferentes situações, a discussão sobre o desenvolvimento nacional freou as pautas dos Direitos Humanos. Sob a imagem da unidade nacional, enormes concessões foram feitas sobre direitos trabalhistas, direitos das mulheres, bem como sobre o acesso aos recursos naturais. O cenário de privação econômica correspondeu ao cenário da privação política, social e cultural. A subalternização de grupos sociais, as políticas de tutela de direitos, a legitimação da violação dos corpos e a inscrição da violência racial como fator superado pela história apenas postergaram a tendência internacional de transformar o conjunto de violações dos Direitos Humanos em objeto de crítica e de base para construção do antídoto da invisibilização.
A aprovação do Estatuto da Igualdade Racial foi aplaudida como uma forma de integrar o Brasil e não separá-lo racialmente. Os comentários em torno de sua aprovação não pouparam loas à qualidade da democracia miscigenada e igualitária brasileira e como os senadores se esforçaram em garantir a continuidade da “sociedade mestiça”. Em contrapartida, a subalternização dos Direitos Humanos ao preceito da nação, não corresponde, até o presente momento, em instrumentos de superação das formas de dominação simbólica e de violência contra as populações racialmente diferenciadas. O novo discurso da mestiçagem é tão prejudicial à construção da democracia quanto foi a ideologia eugenista o foi no século XIX. Ambas partem do pressuposto de que o “interesse nacional” deve prevalecer sobre as periferias de significado das lutas políticas. Disfarça em discurso científico ele se alia às elites na sua definição de sociedade e produz a hegemonia do universal que os atendeu bem até o momento.
Ao comemorar sua paz colonial – mas mutilado em seus aspectos emancipatórios, quais sejam, o acesso à educação universitária e ao direito aos territórios quilombolas -, o Estatuto da Igualdade Racial adquire um aspecto ambíguo, pois “igualdade” nele, passa a ser objeto de tutela do Estado por meio de Políticas Públicas. O espaço da Política Pública tem sido o espaço da Política partidária e não da realização da igualdade. Manter a tutela pela via da Política Pública é parte de um jogo de perversão da democracia que está em desacordo com os Direitos Humanos.

Autodeterminação ainda é desafio para as elites
O esforço do pós-abolição para as populações negras e indígenas foi reconstruir suas vidas em condições completamente adversas. O instrumento privilegiado para isso foi a autodeterminação que, ao longo da história, foi incorporado pelos instrumentos internacionais dos Direitos Humanos. Ser “senhor de si” e “não dar um dia de trabalho” são mais que expressões do status de autonomia que construíram as populações negras indígenas e podem ser observadas nas formas de inscrição da liberdade desenvolvida ao longo das formas de acesso à terra. Ao recusar a liberdade e autodeterminação, as políticas coloniais do Estado brasileiro não fazem mais que reeditar práticas pré-capitalistas alimentando o espectro do racismo bastante vivo entre as elites brasileiras.
O princípio da autodefinição não cabe numa sociedade hierarquizada e racista, pois esta pretende inscrever a diferença como uma realidade objetiva que deve ser abstraída da vida social ou que é responsável por todas as mazelas dos cidadãos. Pretender a homogeneidade da sociedade é um equívoco que nos tem acorrentado de forma violenta à desigualdade real de oportunidades e emancipação humana. Pretender dizer de forma política, intelectual ou jurídica o quê, e como deve ser o Outro, é um exercício de que ainda não nos envergonhamos. É preciso olhar para as fronteiras que se ergueram ela recusa do reconhecimento e desconstruí-las com objetividade, pensando que o resultado da busca da igualdade é para toda a sociedade e não para um grupo privilegiado.
Embora o avanço da visibilização do racismo no Brasil seja evidenciado pelos movimentos sociais, a liberdade ainda é um desafio para as elites do país. Sim, porque ela é um objetivo perseguido com persistência pelos grupos discriminados, enquanto que paras as elites, a liberdade ainda é um desafio cognitivo. A recusa das elites quanto às políticas de ação afirmativa mostra que o seu projeto de sociedade não contempla a liberdade, mas a redução dos sujeitos a conceitos, espaços da burocracia manipuláveis, que têm por finalidade construir guetos bem seguros, mas incapazes de garantir-lhes paz.
A imagem de que o progresso da nação iria redimir os 350 anos de escravização dos negros faliu. A população que se declara preta continua ocupando os piores postos de trabalho, recebendo a menor remuneração, tendo a menor escolaridade, bem como a que é mais assassinada pelo Estado. As populações discriminadas racialmente estão contornando a intolerância oculta do discurso da democracia racial com ações afirmativas e visibilização de suas identidades. Os indígenas, condenados pelos governos ao desaparecimento, mostram-se revigorados não somente em seus sensos, mas na construção de projeto de emancipação econômica e social. Se as elites não conhecem a liberdade, elas terão que experimentá-la pela observação dos processos de reivindicação política das populações discriminadas, como estamos acompanhando no Brasil contemporâneo.

Emancipação
A desconstrução da mestiçagem pela perspectiva do multiculturalismo alcançou vários grupos que haviam “desaparecido” pelo esforço das Políticas Públicas. Os desafios que este processo impõe são da ordem do reconhecimento e da inclusão em políticas distributivas e é nele que se encontram os maiores percalços da governança. Enquanto índios e negros permaneceram símbolos da nação imaginada, eles não ofereciam ameaça à hegemonia das elites. Quando eles se afirmaram pela via dos direitos aos territórios tradicionais ou da diferença racial inscrita na exclusão, eles passaram a ser inimigos da nação. As ações por políticas afirmativas ainda são um desafio no Brasil. As populações discriminadas racialmente enfrentam este desafio mediante um sem número de estratégias políticas, estéticas, poéticas e econômicas. A busca pela emancipação da tutela Estatal tem servido de horizonte à construção de identidades, cujo conteúdo ético/político é a busca da igualdade de condições em situações reconhecidamente desfavoráveis
A resistência às políticas da diferença denuncia os efeitos históricos da invisibilização de grupos sociais na sociedade brasileira. Todo o esforço contemporâneo é desligar-se da racialização excludente promovida pelas elites e reconstruir as identidades no plano das ações afirmativas. Descolar a luta pela igualdade do debate sobre a formação nacional torna-se aspecto central dos movimentos sociais em pelo menos dois aspectos. Em primeiro lugar, construir a igualdade como um bem político amplamente disponível ao reconhecimento e, em segundo lugar, desnaturalizar a justiça e encará-la como um dos aspectos centrais da realização dos Direitos Humanos.
A exclusão “lenta e gradual” da questão dos territórios quilombolas no Estatuto da Igualdade Racial pode nos dar pistas importantes para futuras investidas no campo dos Direitos Humanos. A associação entre território e identidade provocou o ressurgimento do debate sobre a nação que já vinha sendo amplamente discutida com o processo de demarcação das terras indígenas por pelo menos toda a República. Assume-se que as populações indígenas são tuteladas e, portanto, cabe ao Estado garantir sua reprodução física e cultural, a partir da noção de “terra tradicionalmente ocupada”. Com as populações quilombolas houve uma tentativa de homologia entre territorialidade e identidade étnica com o Artigo 68 da Constituição Federal e o Decreto 4887 de 2003, mas seu sucesso, por diversas questões, ainda não foi efetivado.
Creio que duas questões são fundamentais para entender a não efetivação do artigo constitucional - e quero deixar de lado a violência com que o latifúndio se apropriou da Casa Civil para conduzir o debate político. Em primeiro lugar, a Abolição representou a possibilidade de milhões de escravizados saírem do regime de tutela estatal. Esta perspectiva gerou um sem número de identificações nos diferentes contextos em que ocorreu e sua transformação em sujeito coletivo é aqui fundamental. Na questão quilombola utilizaram-se dois critérios importantes: “a opressão social sofrida” e a “autodeterminação”. Estes dois critérios são fundamentais para a compreensão do lugar que o Artigo 68 e o Decreto 4887/2003 assumiram na discussão da raça no país, pois a proposta era em parte garantir as formas de reprodução social e cultural a partir do critério étnico – autodefinição pela condição de opressão sofrida -, e não racial – ser negro ou negra -, mas que poderia combinar os dois critérios. Por meio da titulação coletiva procurou-se contornar outro problema histórico: a tutela. Ou seja, os quilombolas mediante sua titulação coletiva poderiam continuar afirmando sua autonomia social, cultural, etc., diante da lógica predatória de apropriação da natureza do latifúndio, do agronegócio e dos grandes projetos nacionais.
Em segundo lugar, a ratificação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho inaugurou um novo marco para a compreensão e a aplicação dos direitos dos povos no Brasil. A proposta aqui foi desracializar a questão quilombola para que ela ingressasse no plano dos direitos étnicos e assim pudesse ser discutidas em fóruns menos contaminados pela lógica colonial da mentalidade escravista nacional. Como o leitor poderá verificar na mídia, o efeito foi exatamente o contrário. De fato, a capilaridade pretendida com a etnização da questão das comunidades quilombolas ainda está por demonstrar sua eficácia, haja vista a baixíssima taxa de investimento econômico em territórios quilombolas, o desconhecimento da justiça nos níveis locais dos direitos e a inexistência – passados seis anos de Decreto 4887 e vinte e um anos de Constituição Federal -, de uma titulação sequer de propriedade definitiva por parte dos quilombolas.
O tema das relações raciais tornou-se pauta obrigatória no planejamento de políticas públicas no Brasil pós Constituição de 1988. Isto não impediu as constantes ameaças à realização do ideal constitucional da autodeterminação e igualdade, contra o qual os setores conservadores insistem em ditar regras do que deve ou não ser objeto de direito reforçando posturas coloniais e irresponsáveis em relação à maioria dos brasileiros. A elite antagonista das cotas, sequer produziu alternativas às desigualdades no país e colocam-se na contramão das agendas políticas das organizações por Direitos Humanos.
O esforço em recusar as políticas de igualdade racial é uma forma de violação dos Direitos Humanos. É mais provável que a autodeterminação ganhe força, pois ela é critério, a partir do qual, os sujeitos podem reivindicar criar ou reformular seus direitos e fazerem-se representar diante de seus pares e dos poderes instituídos. Embora se argumente que não há diferenças raciais entre os brasileiros, a recusa em reconhecer que a maioria da população empobrecida ocupa as classificações oficiais como “negro” ou “pardo”, representa um racismo invertido. Ou seja, recusar as formas de inscrição da desigualdade, é recusar também as formas de reconhecimento e superação dos danos causados pela invisibilização da racialização das relações sociais.

A luta pela igualdade é todos os dias
A igualdade de oportunidades é um objetivo comum para contornar os efeitos históricos da segregação racial. A experiência estatal que racializou as relações sociais pretendeu criar um país homogêneo, quando sua diversidade cultural e social aponta para a multiplicidade de experiências históricas mesmo entre as populações que se pretendem homogêneas, como indígenas e quilombolas. A experiência de inclusão pela via da assimilação e ideologia da mestiçagem à nação é questionada hoje como traço do apagamento das diferenças que inscreveram de forma violenta a sociedade brasileira. O recurso à diferença tem se mostrado o suporte sobre o qual, muitos grupos constroem seus processos de identificação denunciando a paz colonial do projeto de igualdade.
Concluindo, ante a perspectiva da mestiçagem, os milhares de movimentos sociais urbanos, rurais, internacionais, as redes de significado e desenvolvimento humano interpõem novas formas de etnicidade negra, indígena, etc., ampliando o leque de possibilidades de identificação e de elaboração de pautas de pertencimento e de reivindicação. Certamente esta perspectiva exige um novo olhar sobre a idéia de nação que as formas de tutela estatal ainda não reconhecem como uma forma legítima de direito. Há muito que aprender com as ações afirmativas, sujeitos e identidades coletivas sobre a sociedade brasileira, uma vez que este processo é um reflexo das relações sociais e históricas mais amplas que nos desafiam cotidianamente a compreender a construção da igualdade.

[1]Negro, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo e doutorando em Antropologia no Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. saandro@gmail.com

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