03 fevereiro 2010

Autodeterminação como antídoto


A idéia mais importante da legislação sobre os direitos étnicos no Brasil contemporâneo é a idéia de autodeterminação. Ela tem sido defendida a propósito dos direitos indígenas e quilombolas, mas deve servir de respaldo à um número bastante significativo de grupos sociais cuja identidade e os modos de produção e reprodução cultural foi e é ameaçada pelo poder econômico, político e social.
Nascida após a Segunda Guerra Mundial a idéia de autodeterminação é uma aplicação dos Direitos Humanos que pretende que nenhuma forma de discriminação seja usada contra as populações cuja identidade não seja hegemônica. O acesso às identidades e identificações terá a partir de agora a memória como lugar privilegiado especialmente pela autodefinição que, afastando qualquer forma de objetivação científica da identidade, privilegiará as formas de inscrição desenvolvidas socialmente. A verdade não estará mais no corpo, mas na capacidade de lembrar as atrocidades da guerra e da ideologia do extermínio. É neste sentido que o passado, enquanto vida coletiva, pode ser nomeado como identidade de grupo. Esta nova memória possibilitará pensar os grupos e seus lugares de fabricação, seja a origem comum, a cultura comum, o território comum.
A Democracia Racial brasileira não conseguiu, como modelo político, atender a esta perspectiva humana internacional. Primeiro porque via na mistura das raças solução de todos os problemas da nação e, segundo, na mistura das raças prevaleceria a indistinção, o universal, a nação. As políticas de integração estavam amplamente baseadas neste pressuposto: se o Brasil é o resultado da mistura, aqueles que ficaram, por incompetência ou resistência, fora do pacto social, deveriam ser tutelados até que tivessem condições de fazer parte da nação.
Getúlio Vargas instituiu o Dia da Raça, exatamente para inscrever a “contribuição do povo negro escravizado” na formação da nação. Sublinhe-se que esta contribuição deveria ser vista como pretérita e não deveria originar direitos no novo cenário da nação brasileira. Como falar do passado, mas mantê-lo no passado? A fórmula getulista foi criar os “grandes vultos de nosso passado”, mas sem qualquer pretensão de que eles influenciassem o presente, a não ser se comparados a grandiosidade de Getúlio.
O incentivo getulista à criação de acervos, museus, exposições, dia disso e daquilo foi o sinônimo da criação de uma “memória nacional” controlada e gerida pela máquina de estado. O objetivo desta memória foi separar de vez o passado colonial da sociedade moderna instituída por ele. Nesta memória o “trabalho” deveria vencer “o passado escravista” e todas as formas culturais de sua existência. O que não fosse memória nacional, não era digna de nota ou investimento público e seus portadores sequer existiam como sujeito coletivo. As frestas, as margens e a memória autodeterminada deveriam ser varridas para debaixo do tapete da nação brasileira. Acontece que o tapete ficou curto demais e hoje assistimos à multiplicação de identidades baseadas não mais em um passado romântico, idealizado, e preso no passado, mas no presente das identidades politizadas.
Neste cenário, os negros permaneceram “livres” da tutela de Estado porque seriam integrados à sociedade brasileira. No cenário em que a autodeterminação afirma os princípios da autonomia cultural e econômica, este grupo encontra novas formas de interação e a imagem da tutela foi substituída por políticas de reconhecimento. Ao contrário do que divulgam os detratores destas formas de inscrição na cidadania, não se trata de identificar e reconhecer os grupos como unidades discretas e rotuláveis, mas as suas formas de expressão, sejam econômicas, sociais, lingüísticas e territoriais no presente, através do passado que eles mesmos elegeram.
A autodeterminação é um antídoto fundamental para qualquer tirania seja acadêmica, partidária ou empresarial porque ela deixa aos grupos a incumbência de definirem-se como tais. Também a autodeterminação deixa aos grupos a incumbência de escolher qual o passado que lhes é mais apropriado bem como narrar através de suas próprias opções como, quando e onde começa e termina sua identificação e as lutas pelos seus direitos.

Nenhum comentário: