05 maio 2006

Ações afirmativas: um Brasil que reconhece suas diferenças.


Sandro José da Silva

O debate sobre as políticas afirmativas tem revelado dois Brasis, um empenhado na construção de uma igualdade de fato e outro que insiste em manter as desigualda-des e recusar direitos à parcela empobreci-da da população. A busca pela igualdade de direitos tem sido uma prática dos países com democracia em todo o mundo. No entanto confundimos com freqüência a idéia constitucional de igualdade como o seu contrário, a diferença. As democracias mostram que o avanço da concepção de igualdade presume cada vez mais a eleição das diferenças como marco fundamental na garantia da representação dos cidadãos. A diferença entre as pessoas assume um caráter central porque presume a adoção de critérios históricos, étnicos, sexuais e de gênero, dentre outros, invisíveis quando nos atemos exclusivamente ao formalismo jurídico ou nas regras do mercado como horizonte da igualdade.
Então, o processo de construção social da igualdade no país tem dois momentos: uma formal, garantida pelo estado de direi-to e outra substantiva, ligada à formação histórica e social brasileira. Se quisermos compreender o processo que nos levou às leis de Ações Afirmativas, de que faz parte as cotas para a população negra brasileira, teremos que assumir estas duas vertentes como legais e legítimas para não cairmos no maniqueísmo fácil das objeções indivi-dualistas que privilegiam o mercado e o apagamento da identidade social.

Um pouco de história
A política de cotas não é tema novo nas democracias contemporâneas. Hoje no Brasil há lei de cotas para deficientes (Lei 7.835/89), mulheres candidatas (Lei 9100/95), trabalhadores nacionais (CLT1931), por exemplo, sem contar ou-tras legislações que procuram reduzir a discriminação como a que reconhece os filhos havidos fora do casamento legal como “legítimos”, ou determinados dispo-sitivos que garantem direitos às uniões consensuais homossexuais. As próprias faculdades particulares são beneficiadas com o PROUNI que lhes garante receita mediante o ingresso de alunos pobres.
O próprio Estado brasileiro criou políticas públicas que assegurou as terras dos ex-escravocratas e cogitava-se na época em criar um fundo que indenizaria os escravo-cratas por terem perdido sua fonte abun-dante de renda. Ao negro e ao mulato so-braram as teorias científicas que afirmaram sua inferioridade racial, a invisibilidade como grupo político e a violência física e simbólica como forma de socialidade.
A inclusão do termo “raça” como catego-ria beneficiada com as cotas parece que provocou mais incômodo porque o país até hoje não se permitiu discutir publica-mente a questão, seja por sua origem agrá-ria escravocrata, seja porque nossa demo-cracia racial servia de modelo à dominação social baseada na “democracia social”: cada um no seu lugar!
De fato é com a redemocratização do país que o modelo integracionista da sociedade brasileira é duramente questionado. Tive-ram papel fundamental nesta mudança os movimentos sociais e novas formas jurídi-cas e políticas de tratar a questão das iden-tidades sociais. Até então se acreditava que a discriminação racial era uma herança do regime escravocrata e que a nova perspec-tiva liberal burguesa superaria a descrimi-nação: todos seriam beneficiados pelo mercado.
A idéia de “democracia racial”, que ideali-za uma paz entre os diferentes grupos ét-nicos em função de uma idéia de nação, não propiciou a eliminação das desigual-dades sociais e econômicas, mas aprofun-dou a invisibilidade das questões étnicas do país. Passamos a falar dos negros e ín-dios como se eles estivessem “congelados” no passado do quilombo ou da aldeia e não fizessem parte da grande parcela que é eliminada a cada dia ou que limpa nossas casas e cuida de nossos filhos a cada dia.
Os 120 anos pós-excarvatura mostraram, no entanto, outra realidade pois o país não conseguiu promover o desenvolvimento econômico e social das pessoas negras e pardas que passaram a se “invizibilizar” diante do poder público. Em um censo recente realizado no país constatou-se que havia uma centena de formas das pessoas negras se autoclassificarem quanto à cor da pele para escapar ao estigma da raça negra.
Nossa herança não poderia ser outra. Se-gundo o Instituto Pesquisas Econômicas e Aplicadas, em 2003 a população que se declara como “brancos” têm, em média, uma renda per capita de R$ 482,00/mês, mais do que o dobro do que ganham os negros: R$ 205,00. É 48% mais fácil ser negro pobre no Brasil que um branco per-tencer ao grupo dos pobres que é de 22%.
Quanto ao emprego, 41% dos brancos têm emprego formal enquanto apenas 33% dos negros possuem carteira assina-da. A proporção de negros no segmento mais pobres da população é de 80%, en-quanto a sua proporção no segmento mais rico é de menos de 10%. A pesquisa indica que apenas 18% dos negros são alfabeti-zados e não conseguem alcançar mais do que 70% da média de anos de estudo dos brancos.

Cotas e identidades
A política de cotas representa uma forma de empoderamento das comunidades a-frodescendentes. Assim, as Ações Afirma-tivas como forma de reflexão sobre as di-ferenças e construção de identidades tem sido uma das agendas fundamentais na busca pela compreensão das diferenças na sociedade brasileira. Acostumados com os mecanismos constitucionais que nos ga-rantem água, energia, salários regulares, acesso a bens culturais, políticos e econô-micos, as classes altas perderam a capaci-dade de perceber a diferença identitária como algo fundamental no processo de-mocrático e as possibilidades da mobiliza-ção coletiva em busca de igualdade: é para nós que é direcionado os grandes investi-mentos econômicos do Estado adorme-cendo um sentimento de identidade civil. Nossa busca é pela igualdade de oportuni-dades o que gera uma competição aparen-temente real, mas que está alicerçada em desigualdades econômicas e sociais de to-do o tipo.
É preciso observar a discriminação em termos relativos. Nossos alunos são um bom exemplo de que existe uma domina-ção simbólica que reserva subjetivamente aos negros, mulheres e pobres uma posi-ção desigual. Se olharmos para os cursos de graduação das faculdades particulares veremos um pouco o retrato do Brasil em termos de desigualdade: Os cursos notur-nos e periféricos estão abarrotados pelos alunos(as) negros(as) com sub-empregos em busca de uma oportunidade de melho-ria salarial. Os cursos de odontologia, psi-cologia e direito são oferecidos a preços impraticáveis pelos alunos assalariados que vêem nos cursos como enfermagem, co-municação, pedagogia e fonoaudiologia, uma alternativa que é ao mesmo tempo um sintoma dos “lugares sócias” dos gru-pos marginalizados e forma de reprodução histórica desta marginalização.
Ao conversar com os alunos é fácil perce-be o desejo pelos “cursos da elite” e ao mesmo tempo uma justificativa “natural” - do tipo “sempre gostei...”-, para a escolha recente. Portanto, existem mecanismos de reprodução das desigualdades no acesso a bens coletivos como a educação que ter-minam por revelar que não importa se o ensino é público ou privado pois a desi-gualdade estará ali expressa.
A história tem demonstrado que o reco-nhecimento da igualdade não significa, no entanto, suprimir as diferenças. O que o Estado pretende é integrar-se numa pers-pectiva mais ampla que está discutindo determinadas heranças do passado e que são sintomáticas dos países em desenvol-vimento tais como discriminação da mu-lher, do idoso, dos negros e das popula-ções étnicas. Somos levados a rever a idéia de que somos iguais perante o Estado e assumir que o que nos constitui enquanto iguais são as oportunidades: não existe um marco zero de onde todos partem para um objetivo. É esta idéia que está em discus-são quando falamos em cotas. No entanto pensamos que os critérios democráticos baseados no individualismo são o bastante para unir a sociedade em um projeto cole-tivo.
Enganam-se alguns autores quando afir-mam que ao se sentar para prestar vestibu-lar um aluno é igual ao outro, não impor-tando se é filho de juiz, deputado ou faxi-neiro. Em muitos sentidos eles são iguais, mas em tantos outros eles são desiguais pelo seu histórico sócio-econômico e raci-al. Diante da afirmação de que o país é uma mistura de raças e de que não é pos-sível dizer quem é negro basta olhar para o sistema discricionário da polícia que sabe bem quem é negro.

A via política das cotas
O argumento mais forte contra as cotas é o fato de o país não investir no ensino fundamental para reverter a longo prazo o déficit em termos de acesso à escola. A idéia de igualdade entre os cidadãos é o fundamento deste pensamento. Uma vez educados de forma igual os sujeitos estão aptos a partir para a competição livre do mercado onde vence o melhor. A idéia de um Estado neutro, igual para todos, tam-bém completa esta idéia pois a “paz soci-al” reflete uma inércia deste mesmo Esta-do em incluir demandas vindas “de baixo” e sua capacidade em dividir os recursos “por cima”.
A Convenção Internacional para Elimina-ção de Todas as Formas e Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil em 27 de mar-ço de 1968, define em seu Art. 1º- 4 que “não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étni-cos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos huma-nos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam em con-seqüência à manutenção de direitos sepa-rados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos”.
Sob este aspecto a política de cotas é um instrumento político. Se por um lado há um mercado de bens a serem conquista-dos, de outro o Estado é fruto de lutas sociais de grupos diversos cujo fundamen-to é a garantia da equidade entre seus sig-natários. Acontece que esta igualdade é também fruto de uma construção social onde os indivíduos entram com “capitais sociais” distintos e desiguais. O resultado desta disputa é uma violência simbólica dos que tem mais capital social que pas-sam a dominar as regras de produção dos bens simbólicos tais como educação, polí-tica, etc. À sociedade civil, palco de todas estas lutas, cabe o controle via a resistência política destes abusos. Assim, é por meio de políticas públicas, mas sobretudo nas lutas sociais que determinados grupos so-ciais passam a fazer “parte do jogo da i-gualdade”.
É assim que, sendo o Estado brasileiro signatário desde 1968 da Convenção In-ternacional para Eliminação de Todas as Formas e Discriminação Racial, sua efeti-vidade deu-se apenas com a organização do movimento social negro na sociedade civil e no interior mesmo do Estado para a implementação de leis pela igualdade raci-al. Na conferência de Durban (África) em 2001 o Brasil não teve, entre as 42 pesso-as, representantes negros pois não existiam negros entre os 157 embaixadores brasilei-ros de carreira.

Cotas para um Brasil igual
Os analistas mais conservadores vêem o vestibular como uma forma de avaliar os alunos representando uma “ilha de mo-dernidade no oceano do patrimonialismo brasileiro” e, de fato ele é. O que se pre-tende hoje é incluir alterações em termos substanciais que orientem o vestibular para outras escolhas daquelas que ele fez histo-ricamente a partir de princípios mais en-globantes e que respondam a critérios da própria estrutura da sociedade brasileira. Neste sentido teremos que ver ainda mui-tas lutas e enfrentamentos pela constitui-ção de um país democrático que seja a expressão de suas diferenças étnicas, raci-ais, sexuais, dentre tantas outras.
O que os defensores das cotas argumen-tam é que eles estão a favor da legalidade pois assumir uma política de Ação Afirma-tiva significa defender um país mais iguali-tário na distribuição de renda e que isto redunde numa oferta mais igual de opor-tunidades, redução da violência simbólica em termos étnicos, ou seja, com as cotas não são os negros os maiores beneficia-dos, mas a sociedade como um todo. E aqui retomamos um dos fundamentos do Estado democrático de direito: é preciso que a igualdade seja construída desde uma perspectiva da sociedade civil, uma prática que aos poucos vamos reconstruindo dos escombros dos regimes desiguais de fato.

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