17 janeiro 2006

O ÍNDIO QUE SUMIU DA PRAÇA: O PODER E O SÍMBOLO

Sandro José da Silva
(Antropólogo e professor do DCSO - UFES - Brasil)
Gostaria de agradecer imensamente o gentil convite e apoio do professor Renato Pacheco para compor esta IV Jornada de Navegações. Publicado em “Cadernos de História” N34 IHGES, Vitória, 2000.

Prezados senhores, esta comunicação é parte das reflexões que venho realizando no âmbito de uma história indígena no Espírito Santo mas também sobre as relações de poder que aqui se estabeleceram sobretudo a partir da colonização européia em meados do século XIX. Ela fala de um monumento público mas também de relações sociais e do imaginário colonial que povoa nossas práticas políticas e históricas. Como todos verão, trata-se de reflexões que carecem ora de rigor histórico - fato justificado uma vez que sou antropólogo -, ora de um trabalho mais prolongado, que creio, deverá concentrar-se numa “sociologia da sociedade capixaba”. O que procuro no entanto é menos os testemunhos “verdadeiros” dos acontecimentos e mais o sentido que algumas práticas sociais e políticas adquiriram entre nós. Assim, o texto é mais propositivo que conclusivo pois deixa muitas questões no ar, uma vez que, como afirmou o filósofo Michel Foucault, uma história das idéias - configurada no que ele chamou de método genealógico -, só pode ser conseguida com um trabalho de longa duração, onde os menores signos da interpretaçao das idéias componham um grande sentido.

Acidentes de um viajante urbano
Naquela manhã cheguei ao centro de Vitória pela avenida Mascarenhas de Moraes. Lancei o olhar para a estátua do índio Araribóia cuja flecha, tencionada pelo arco em suas mãos, tinha um coco verde cravado na ponta a anular-lhe o sentido último. Vi um rapaz dormindo na base em que ela está fixada e os lavadores de carro que retomavam mais um dia de trabalho, sob a sonoridade do trânsito e suas próprias gargalhadas. Meus colegas que lavam carro ali consideram um ótimo lugar para trabalhar e poucos sabem o nome daquela estátua ou mesmo as implicações que a conceberam. O local, a estátua e seus vizinhos formam uma paisagem desafiadora para quem passa por ali todos os dias. A estátua de Araribória - o índio, como todos se referem -, voltou a seu lugar or,’ínaIdesde o início da década de noventa. Forjada em bronze na década de sessenta para uma praça em frente a prefeitura de Vitória, a “praça do índio”, a estátua figura a bravura e a audácia do herói capixaba setecentista e sua posição estratégica reforça algumas representações sociais e idéias sobre as populações indígenas no Espírito Santo. Sua concepção, embora represente o índio hiper real dos filmes, também não deixa de nos lançar no mundo às vezes fabuloso - no sentido da fábula -, da história colonial capixaba. Mas o que fez mesmo Araribóia? Por que o herói ganhou uma estátua? Onde fica a praça do Indio? Por que o centro de Vitória para a praça e a (194) estátua? E, enfim, por que tal símbolo? Minha sugestão para responder estas perguntas é retomar algumas idéias bastante dispersas sobre a história do Espírito Santo, cuja formação de símbolos de identidade próprios constitui uma tentativa quase obsessiva entre suas elites. O espaço urbano é tomado aqui como uma narrativa sobre a história pensada por estas elites, gerenciadoras do espaço urbano, e donos da fabricação do tempo e do espaço, sobre os símbolos que criam, recriam e tornam legítimos. Este parece ser o motivo que levou à criação da estátua e de sua mobilidade pela cidade como veremos.

Espaço e imaginário social
Vamos começar pelo começo. Vocês sabem onde fica a praça do índio? A resposta ou a falta dela deixou desconcertados vários amigos a quem enderecei a pergunta. Pois bem, a dita praça - meio barranco, meio esquecimento -, fica logo depois do Clube Saldanha para quem chega ao centro pela Avenida Mascarenhas de Moraes - Beira Mar. Vejamos que ela foi rebatizada posteriormente de “Praça Américo Poli Monjardim”, que abrigava o “Indio’ Ele está ali, imóvel assentado sobre uma tosca coluna de cimento, apontado sua flecha em direção ao referido clube e outrora fortificação de defesa contra os “temíveis franceses’ O barranco gramado é seu pano de fundo e o lugar pouco freqüentado por pedestres - pelo medo de assaltos e pelo acúmulo de (195) pessoas “suspeitas” que guardam os carros’ Araribóia está no limite entre o centro da cidade e os bairros, desafiando quem olhe para ele. Ele está onde a cidade de Victória acabava e onde começava os sertões e a “terra inculta’ Como em nossas imagens silvícolas mais caras, ele está caçando - gente ou bicho? - e revela uma intimidade com a natureza que se confunde com ele próprio’ “Bota o índio no lugar” gritava-se nos bailes de carnaval daquele ano de 1963. Carlos Lindenberg não ouvira os apelos “populares” e estátua ficou nos porões da prefeitura de Vitória até ressuscitar mediante decreto. Novamente na vida pública, agora com o nome de Araribóia, a estátua é retirada na década de 70, pelo prefeito Crisógono Teixeira da Cruz, e levada para o aterro da CONDUSA, um lugar então deserto - sempre em direção à natureza e as terras incultas. Ela ainda terá uma passagem rápida pela praia do canto, em frente a praça dos namorados e, apenas hoje, repousa no canteiro da via expressa que leva os carros até o centro da Vitória. Curiosa mente a estátua parece não ter um lugar. Do centro ela foi retirada para a Praia do Canto, na praça dos namorados. O lugar tornou-se moderno demais para a estátua de um índio e ela teve que voltar para o centro da cidade, mais acostumado com velharias - centro histórico diriam os entusiastas. Afinal, o que fazia uma estátua com aquele tema num lugar que é o símbolo do progresso e das coisas inovadoras em nosso (196) estado? Todos sabem que o novo arrabalde foi uma invenção espetacular que remodelou a paisagem costeira de Vitória, consumiu suas belas praias e devorou os mangues adjacentes. Por que abrigar o “sinônimo” da vida “selvagem” se o bairro é a própria encarnação do triunfo da modernidade de nossas elites? Voltemos à idéia da estátua. Sua localização é uma recriação do Espírito Santo colonial, do pós descobrimento e da idéia que as administrações republicanas fizeram dela desde o século XIX. Alguns elementos compõe o lugar e o Araribóia não pode ser tomado isoladamente. A vulnerável entrada da baia de Vitória, o Penedo, cujas correntes evitavam o atracamento de navios forasteiros, o forte São João que os repelia com seus poderosos canhões e, o elemento indígena, nosso destemido Araribóia, “frechando” os inimigos tapuios sob o toque da coroa portuguesa e figurando como o fundo de nossa bravura e mansidão apenas Capixaba. Teríamos, assim, um complexo colonial arquitetônico dramaticamente representado por monumentos ali parados e quase invisíveis aos nossos olhos, cujo sentido é exatamente ser esquecido. Tais monumentos tem o poder de criar, por meio de uma narrativa própria, parte da identidade histórica capixaba, ainda que tais fatos apareçam mais como mitos contados e recontados.
Tempo e imaginário histórico
Mas, porque reunir tais símbolos? E por que em tal lugar? Certamente o centro de Vitória não tem mais aquele interesse urbanístico e comercial que tinha em anos passados. Os índios, por outro lado servem apenas para justificar o “caldeão” e realmente a história colonial não tem o menor sentido para nossos escritores, historiadores e sociólogos. Os prédios e o entorno estão ali, esquecidos por algum motivo, abrigando os pais envelhecidos e silenciosos. Nosso exemplo do “complexo colonial” ilustra e levanta algumas questões nesta direção. Ora, desde a ocupação colonial seiscentista, não tínhamos outro grande evento quanto foi a imigração européia no estado. Isto éo que dizem nossos historiadores, cronistas, padres, polfticos e todos os que querem traçar uma memória genealógica na busca da “identidade capixaba’ Assim, eles fazem um coro para “inventar” e valorizar determinados símbolos em detrimento de outros. Este jogo pelo “poder simbólico”, embora difícil de ser apontado concretamente, tem uma ampla repercussão na vida cotidiana das pessoas e no espaço urbano e, como quero crer, cria uma “violência simbólica” ao eleger seus símbolos e tomar outros como apêndice da sua vitória/conquista. Portanto, a idéia de que os símbolos culturais recriam a sociedade nos leva a pensar que eles tornam-se alvo de disputa política bastante concreta numa espécie de colonialismo tardio. Aqui é que retomamos nosso Araribóia.
A empresa colonial parece que sobrevive na memória capixaba como uma conjunto de épicos, constantemente reforçados pelos que escrevem nossa história. Assim, quando os portugueses chegaram, foram enfrentados pelos “selvagens”, mataram-nos e ergueram, diante da vitória a Victória! Esse é o nosso primeiro mito fundador. Nada mais acontecerá, como qualquer um pode constatar na nossa “história” até que, pelas mãos dos republicanos higienistas, a empresa colonizadora torne nossa terra povoada, culta, cultuada! Esse é nosso segundo mito fundador. Mas, perguntaria um colegial, não houve nada aqui antes? Nossos escritores dizem que não. A terra estava inculta, os espaços desocupados, o chão por revolver e alguns indolentes vagabundos em seu do/ce far niente’J Este segundo mito fundador quase apaga, em termos de seu poder e violência simbólico, a empresa dos “estultos portugueses” que deixaram a província à própria sorte. O resto da estória todos conhecem: café, indústria, portos, progresso e cidades modernas. Finalmente Araribóia está devolvido ao status que gozam as populações indígenas no estado. Seu passado de glórias e alianças com os portugueses penetra os dias de hoje como uma espécie de eco histórico. As populações indígenas contemporâneas são reféns destas representações indianistas - cocar e flecha - que as mantém nos séculos passados e negam-lhes os motivos do presente. A dinâmica histórica recria seus mitos, se esquece das realizações concretas e dos dramas contemporâneos dos povos sobre os quais versa. A mitologia histórica capixaba talvez seja maior que o cotidiano dos que hoje lhe serve de suporte discursivo tornando-se meramente uma imagem, distorcida e distante. E para esta cidade submersa pelo mito que devemos olhar às vezes.

Nenhum comentário: