22 maio 2006

Quando as diferenças nos completam: identidade e religião

Sandro José da Silva[1]

As diferenças nos completam
Proponho nesta noite pensar e sentir que a vida coletiva é feita de reconhecimentos pelas diferenças e que são estas diferenças que nos completam enquanto seres humanos.
Falar de religião é falar de identidade social. Uma pessoa define suas crenças como uma forma de se ligar ao mundo das outras pessoas, criar vínculos afetivos, construir sua vida e alimentar a esperança de uma vida feliz em que ele se reconheça como pessoa e reconheça aos demais como seus companheiros. A religião cria um lugar no mundo para as pessoas, a despeito do país em que ela vive, sua cor, etnia, classe social ou opção sexual. Nas palavras de um grande estudioso, a religião faz a humanidade melhor.
No entanto, vemos os conflitos religiosos se multiplicarem em nosso dia a dia. O que acontece com aquele que deveria ser o lugar de retorno e tranqüilidade das pessoas? Por que vemos se multiplicarem dia após dia as desconfianças, as acusações, perseguições em nome de uma crença religiosa?
Ora, compartilhamos as mesmas dificuldades sejam elas econômicas ou políticas. Então, por que aumentar o clima de insegurança e desrespeito com aquele que é nosso vizinho, parente, amigo? Por que a intolerância com aquele que compartilha conosco as dificuldades do bairro, do transporte, da escola precária?
A resposta não é fácil, mas temos que tentar compreender o fenômeno sob pena de ficarmos distanciados daquilo que pregamos todos os dias. O momento é de buscar o que nos une e não o que nos separa, pois temos um mundo a herdar para nossos filhos e netos e queremos que ele seja melhor que este.

O respeito à diferença

Que o Brasil é um país de desigualdades, isso todo mundo diz. Mas, o que podemos fazer para que estas desigualdades não se tornem muros intransponíveis?
A vida em sociedade não é feita de semelhanças, mas de diferenças. Se olharmos em volta e enxergarmos nosso colega poderemos constatar isto. A todo o momento esbarramos em pessoas diferentes, dependendo ora de um auxílio, ora de uma ajuda para superar uma situação difícil. A diferença não está muito longe de nós: em casa, no trabalho, no ônibus, é só prestar atenção que lá está a diferença! Recusar a diferença é recusar a vida em sociedade!
Mas há duas formas de compreender a diferença: uma delas – a diferença social – nos oprime pela exclusão social, pela pobreza, pela violência, pelo racismo e discriminação. A outra – a diferença de identidade – nos faz mais seguros de nós mesmos pois para nós ela é uma forma de nos situarmos no mundo para seguimos dando sentido às nossas vidas. Enquanto a primeira é prisão, a segunda nos serve de horizonte.
O que devemos recusar é a diferença social, pois ela elimina as nossas possibilidades enquanto seres humanos. A diferença social é uma forma de nos empurrar cada vez mais para as periferias da vida, para a exposição à violência e para o rótulo de “ignorantes”. Se concordarmos com a diferença social iremos reproduzir as formas de dominação que nos aflige e nos torna menos humanos, menos solidários, menos amigos, menos vizinhos, menos pais e mães!
A diferença de identidade, pelo contrário nos faz pensar em estar próximos dos nossos semelhantes respeitando as diferenças. Ela nos permite sentir-nos seguros e ao mesmo tempo pensar que o mundo pode ter muitos caminhos para se chegar à felicidade.
Até onde chegamos como humanidade foi fruto de muitos conflitos mas, mais ainda de cooperação e respeito às diferenças. O Outro neste processo é fundamental simplesmente porque sem ele eu não existo, ou seja, é a partir desta relação de diferenças que eu construo a minha identidade.

Da diferença ao reconhecimento

Mas, o que fazer com a diferença? Como se comportar diante da singularidade da vida em sociedade? O Brasil se orgulha de ser um país democrático em termos do respeito às culturas: mas isto é verdade?
Se olharmos para a história do Brasil o que veremos? Uma terra imensa colonizada por um número enorme de grupos vindos de todos os lugares do mundo: africanos, portugueses, italianos, alemães dentre tantos outros. Cada grupo trouxe sua cultura para formar o que denominamos o “nosso país”. Aqui chegados encontraram outros povos, os índios, com suas culturas milenares e seu modo de vida também singular. O que aconteceu depois deste encontro todos sabem: extermínio, escravidão e desrespeito baseados na idéia de que o Outro era perigoso ou desprezível.
Temos condição hoje de olhar para este passado e recusa-lo pois sabemos quais destinos nos aguardam nos caminhos da intolerância. Não é o caso de apontar este ou aquele evento, mas de refletirmos sobre a necessidade da paz em termos das crenças que se traduz no reconhecimento.
O reconhecimento é uma forma de viver a vida como se acha correto e respeitar as outras formas de expressão cultural. A máxima “o seu direito vai até onde começa o meu” deve ser reescrita como “o seu direito anda junto com o meu”. Apenas desta forma começaremos a reinventar uma nova forma de sociedade que escape da violência.

Evitar a judicialização e buscar o diálogo

No Brasil, as classes de baixa renda são vitimas da violência, da falta de escola, de saneamento, oportunidades de emprego, acesso a bens culturais, acesso à justiça, moradia dentre outros bens que são coletivos, mas que são apropriados apenas por uma pequena parcela da sociedade.
Os moradores da periferia são, desta forma, verdadeiros heróis que conseguem, com o pouco que conquistaram, educar crianças, sustentar suas famílias, promover a boa vizinhança, manterem-se informados, participar da vida do bairro e fazer política. Para termos uma idéia do que estou falando, a solidariedade desta população ajuda, segundo dados oficiais, outros 16 milhões de brasileiros em condições miseráveis.
Os bairros populares da Grande Vitória são grandes oficinas de criatividade, onde a poesia e a arte estão presentes em cada manifestação religiosa: música, poesia, artes visuais são contempladas a cada dia com demonstrações de vitalidade e dedicação.
Basta surgir uma oportunidade que os grupos dos bairros estão lá para discutir seu orçamento, sua saúde, a escola que querem, a creche que lhes falta. Isto é um fundamento da cidadania, a participação. O sistema da “diferença social” quer a cada dia que participemos menos da vida pública de nosso bairro, de nosso município, estado e país e nos ocupemos de conflitos privados.
Mas, a vida nos bairros de baixa renda tem no reconhecimento um marco fundamental na forma com que as pessoas se mantém vivas e com esperança de uma vida melhor. Desta maneira, seria um equivoco abandonar a possibilidade de diálogo amistoso pela resolução dos conflitos mediante a justiça. Isto por dois motivos.
Em primeiro lugar esta justiça não conhece os problemas do dia a dia dos bairros de baixa renda, pois ela está distante e se ocupa das classes altas onde o conflito é tratado por meio de advogados bem pagos, sem que os envolvidos apareçam. Segundo, designar esta justiça como mediadora do conflito é retirar a possibilidade do diálogo entre as pessoas e perder a autonomia da vida dentro da comunidade da qual se faz parte.
O que imagino é que as pessoas não podem perder o bem mais caro que elas têm que é a comunicação. Por falta de comunicação acabamos nos deixando levar pelas posições cômodas, deixando avançar a desconfiança no Outro e rivalizando onde deveríamos estar somando: os problemas sociais são comuns às religiões que estão na periferia. Então, por que aumentar o clima de discórdia ao invés de organizar forças para combater a discriminação e a violência?
Esta situação não condiz com a generosidade das pessoas que moram em bairros de baixa renda, que tem seus filhos estudando nas mesmas escolas, utilizando os mesmos ônibus, comprando nas mesmas feiras e mercados. Cada pessoa tem o direito de manifestar suas crenças e ser respeitado como tal

A transformação do religioso

A religião não deve ser vista somente como um conjunto de fiéis e suas crenças. Em todo o mundo temos inúmeros casos em que as religiões são organizações fundamentais na garantia dos direitos humanos. Quem não conhece a luta de Martin Luther King ou de Gandhi? Há muitos exemplos de religiosos que buscam o bem comum a despeito de seu credo.
Nos Estados Unidos os negros evangélicos das periferias descobriram que o governo jogava todo o lixo das cidades nas imediações de suas casas. Eles se organizaram e conseguiram obter, após muita luta, o direito de desfrutar de um ambiente saudável.
No Brasil das desigualdades raciais há inúmeros grupos do candomblé que organizam os jovens negros das periferias resgatando sua negritude e o orgulho de sua etnia, tão dilapidada pela violência do período da escravidão e da discriminação recente.
Neste caminho inovador que alia o reconhecimento das diferenças, os grupos urbanos de Reggae transitam entre mensagens religiosas cristãs e afrodescendentes numa demonstração de que a pior fronteira é o preconceito.
O reconhecimento desta situação é um fator positivo para a identidade das religiões, pois nos mostra que não importa se você é evangélico, umbandista, candomblecista, budista, católico, etc. pois todos estão expostos igualmente à desigualdade do nosso sistema social.
E a solução para esta desigualdade não se dará com ações individuais visando o benefício apenas de sua comunidade de fiéis pois estas ações já mostraram que são capazes de recriar e reproduzir a violência de uns contra os outros. O foco da transformação da violência em paz passará necessariamente pelo reconhecimento de que o maior inimigo a ser combatido é desigualdade a social.
Tomando como exemplo a lei da educação que obriga as escolas a reconhecerem a contribuição dos negros em nossa sociedade (10.639), fico com o pensamento da senhora Sónia Mairos Nogueira Coimbra afirmando que
“Acima de tudo é necessário ter em conta que Educação engloba muito mais que ensino, não se restringindo por isso às salas de aula, aos manuais escolares e à dialética professor/aluno. Educação diz respeito a todos os cidadãos, à forma como nos relacionamos quotidianamente com as pessoas que conosco convivem. Afinal, independentemente do país de origem, da cor ou da religião é de pessoas que estamos a falar, de seres humanos com necessidades e desejos, com expectativas de uma vida melhor, que também cabe ao nosso país ajudar a concretizar.”

Proposta

Como forma de não perdermos o nosso bem maior que é a comunicação e o respeito à diferença sugiro, como morador serrano, a criação de um Conselho de Tolerância Religiosa que estude as leis relativas aos direitos à educação e acesso a cidadania e seja um fórum em que as diferenças sociais não se transformem em conflitos religiosos.

[1] Antropólogo e professor da UFES. Palestra proferida na Audiência Pública na Câmara dos vereadores do município da Serra no dia 19 de maio de 2006.

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