17 agosto 2007

Seis teses equivocadas sobre os quilombolas no Sapê do Norte.

No mês de julho de 2007 foi lançado pelos ruralistas um panfleto denominado “movimento paz no campo” cujo objetivo é desqualificar o pleito por direitos das comunidades quilombolas no Sapê do Norte. Dentre outras formas de desqualificação, o panfleto acusa o governo federal de incitar a violência a partir dos processos de desapropriação. Acreditamos, no entanto, que a maior desqualificação é feita com as comunidades quilombolas dada a forma com que elas são apresentadas no panfleto. Este texto retoma os argumentos dos ruralistas detectando neles a forma preconceituosa histórica que tem orientado as relações sociais no Sapê do Norte.
É diante deste quadro de ocupação tradicional secular que a voz conservadora dos proprietários se levanta. O argumento que utilizam é:

1. O “movimento pela paz no campo” chama de “radical” as Ações Afirmativas que estão devolvendo os direitos sobre os territórios quilombolas;
Radical foi a escravidão como política pública do estado brasileiro que levou ao extermínio ou aviltamento centenas de milhares de negros e negras, crianças e jovens. trezentos anos de cativeiro deixaram marcas profundas não somente nos negro e negras, mas na mentalidade do povo brasileiro. A busca da igualdade deve ser uma constante, mas as diferenças construídas no passado devem ser enfrentadas de maneira objetiva e não com o discurso de vítima das elites brancas. Não foram os quilombolas que ameaçarem com palavras do tipo “haverá um banho de sangue” ou “guerra racial” como fez o senador Gerson Camata na mídia nacional.
Para termos idéia da continuidade da violência contra as populações negras, na última reintegração de posse contra os quilombolas de Linharinho foi utilizado um efetivo de 120 soldados militares fortemente armados trazidos dos batalhões de Vitória e São Mateus. Enquanto do outro lado, duas dezenas de quilombolas sequer puderam reunir suas panelas e pertences culturais para deixar o sítio onde há décadas atrás um coronel da região queimou a casa de um quilombola.
A história se repete. O que os empresários do agronegócio estão patrocinando com a cartilha do movimento pela paz é, na verdade, uma reação racista a uma política pública. Os quilombolas se perguntam que paz é esta que beneficiou apenas os latifundiários e o agronegócio há séculos e que agora recusa um direito inscrito na Constituição Federal. Se há uma violência ela está caracterizada pela tentativa dos empresários em desqualificar o caráter e a identidade dos quilombolas envolvidos na garantia de seus direitos.

2. Que “os brancos terão que pagar uma conta muito alta pela escravidão que os antepassados dos brancos impuseram aos antepassados dos negros”;
Os “Brancos” não têm que pagar conta alguma. A conta é paga pelo Estado Brasileiro, que do mesmo jeito que paga os financiamentos agrícolas para as elites agrárias e latifundiárias há séculos, também vai indenizar os “posseiros”. O agronegócio recebe milhões de dólares anuais do governo federal para exportar as riquezas. Esta não é a opção dos negros que querem de volta as matas, os córregos e a caça. A diversidade cultural que os fazendeiros querem eliminar é a garantia de uma sociedade mais igualitária e justa, sem que negros e negras sejam alvo de discriminação como acontece hoje em relação ao racismo institucional.
No Brasil o Índice de Desenvolvimento Humano dos negros é baixíssimo e nas áreas rurais é menor ainda. O IDH dos negros no Brasil passou de 0,608 em 1991 para 0,703 em 2000, o que representa um IDH de país com desenvolvimento humano médio. Já o IDH dos brancos do Brasil passou de 0,745 em 1991 para 0,814 em 2000, o que representa um índice de um país com desenvolvimento humano elevado. O quadro só não é pior porque as comunidades quilombolas conseguiram criar seus espaços de liberdade e independência econômica e cultural. É esta experiência que o Programa Brasil Quilombola quer ampliar com a regularização das terras quilombolas.

3. O artigo 68 não é respeitado porque as terras que os quilombolas ocupam é menor do que pleiteiam;
A lógica da propriedade no Brasil sempre foi individualista, não respeitando outras formas de ocupação tradicional como a terra coletiva e de uso comum, própria de muitas comunidades quilombolas. O que o artigo 68 indica é que as terras quilombolas têm um perfil social diferenciado porque atendem à grupos de parentes e famílias, caracterizando-as como Território e não como parcela cujo valor se encontra numa bolsa de valores. Além disso, os espaços destinados ao manejo agrícola completam-se com outras formas de ocupação tais como a realização de festas, cultos, ervas medicinais, espaços interditos, terras para descanso, etc.
O que o Programa Brasil Quilombola pretende é garantir o direito destas populações devolvendo-lhes seu bem mais sagrado que é a terra. Recentemente um senador zombou da prática das famílias quilombolas em enterrar o umbigo da criança na terra onde ele nasceu. Sob a ótica do capitalismo este parece ser um costume ultrapassado, mas ele representa uma relação de identidade do quilombola com a terra que é um bem moral.
O território quilombola coloca em cheque o mercado de terras que se criou no Espírito Santo, ou seja, retomou a discussão da função social da terra que não estava atendendo sua finalidade, mas servindo de especulação ao agronegócio capixaba. Basta olhar para as inúmeras posses completamente desocupadas que aguardam uma melhor oferta de cana-de-açúcar ou eucalipto. A lógica de ocupação quilombola do território não tem haver com a especulação imobiliária, mas com a reprodução das condições de vida de famílias inteiras.

4. O argumento do pleito quilombola é racista porque cria um país bicolor, quando ele multicor;
A democracia racial já foi sumariamente criticada por toda a sociedade. Embora vários intelectuais sejam chamados a dar suas opiniões também racista, o fato é que a sociedade definiu, a partir de sua Carta constitucional de 1988, que as populações negras foram violentadas e que merecem reparo pelos danos sofridos. As lutas seculares dos negros em busca de liberdade alcançaram mais um degrau com o artigo 68 e o decreto 4887.
São Mateus é um município violento com os negros. O trato do dia a dia mostra ainda uma separação entre brancos e negros fortíssima. O Museu da cidade defendida pelo “historiador” Nardoto não traz uma referência sequer aos negros que lutaram pela liberdade enquanto o museu do Maciel Aguiar exibe os instrumentos de suplício como um troféu que nenhum descendente de escravos gostaria de se identificar, lembrar ou mostrar aos seus filhos.
Embora seja o município mais negro do estado do Espírito Santo sequer há uma política educacional que privilegie uma história destes negros, pois eles ainda são vistos como “os herdeiros do cativeiro” pelas ruas da cidade e não como cidadãos com direitos.
O Programa Brasil Quilombola pretende que o racismo invisível que ronda as políticas públicas, o dia-a-dia nas escolas, no mercado, no banco e na ocupação da cidade não seja mais um empecilho ao desenvolvimento dos negros e negras. Trata-se e uma política pública com outra qualquer que identificou uma falha histórica no estabelecimento da igualdade formar que quer agora corrigir esta situação que deveria envergonhar-nos.

5. O território pleiteado pelos quilombolas é produtivo e abriga o agronegócio;
O agronegócio que se implantou há quarenta anos transformou radicalmente São Mateus. Basta andar pelos bairros mais pobres da cidade e perguntar de onde vieram as milhares de famílias. Ao contrário do “êxodo rural”, estas famílias foram alvo de políticas públicas do estado brasileiro que, através de financiamentos e concessões de terras, excluiu milhares de famílias negras de um futuro tranqüilo e com paz.
Quando perguntamos aos quilombolas sobre suas terras eles afirmam que não são “sem terra”. Eles têm as terras que os avós lhes transmitiram, mas que foram expropriadas por fazendeiros e pela Aracruz Celulose. O agronegócio impede que outras formas de manejo tradicional com a terra seja produtivo, pois utiliza grande quantidade de veneno, seca o solo, expõe o solo à chuva e erosão. Os quilombolas que resistiram à expropriação lutam com dificuldade para manter-se nas suas terras cercados de violência e desrespeito aos direitos humanos.
Se olharmos para o “agronegócio”, veremos que ele é mantido com o trabalho dos quilombolas, ou seja, os quilombolas já detêm a tecnologia de manejo tradicional e agora sabem como lidar com o agronegócio porque trabalham nas lavouras por salário mínimo. Ou seja, quem gera a riqueza no sapê do Norte foram e são os quilombolas. O que eles precisam é ter suas terras devolvidas para gerar mais emprego aos seus familiares que são expulsos todos os dias há quarenta anos.
Recentemente a Aracruz Celulose chamou de “projeto social” a licença para os quilombolas apanharem os restos da extração do eucalipto. O preço do carvão fabricado com estes restos alimentou por pouco tempo os sonhos dos quilombolas que viram naquela atividade uma forma de sobre-explorar o trabalho humano e ao mesmo tempo eliminar a identidade quilombola> a empresa proibiu a criação de qualquer linguagem que estives-se relacionada com a identidade quilombola.
Hoje os quilombolas conseguem perceber que o trabalho nos talhões da empresa teve um caráter de semi-escravidão porque eles limpavam a terra para um novo plantio, mas não tinham direito a um salário, carteira assinada, seguro social, seguro desemprego, plano de saúde, salário família, vale transporte mas, sobretudo, não tinham o direito de se organizarem para o trabalho como quilombolas. A Procuradora do Ministério Público Dra. Débora Dupratt chegou a classificar a ação da empresa como uma violação dos direitos internacionais, mas nada até agora foi apurado.

6. O governo estadual e municipal, bem como os deputados capixabas apóiam os “produtores rurais”;
A base do poder no Espírito Santo sempre foi o latifúndio. Desde os presidentes de província até os bispos são membros de famílias abastadas com terras e escravos. Hoje, quando o agronegócio do eucalipto dita as regras de mercado para a elite empobrecida de São Mateus e Conceição da Barra, ela se levanta contra o pleito dos quilombolas. O seu calculo é somente um: “eu vou ganhar mais com a indenização do Lula, com os royaltes do petróleo ou com o metro da madeira?” A Aracruz sabe desta dúvida e se antecipou no financiamento da campanha difamatória e racista contra os quilombolas. Ela reuniu alguns empresários do agronegócio e passou a colocá-los diretamente em contato com a Casa Civil, os deputados estaduais, federais e senadores que ela financiou para servirem de pelegos aos seus propósitos que são o de expandir os plantios e continuar impune pelos crimes contra a pessoa humana e contra o meio ambiente.
Este é um calculo triste, pois ele não leva em conta vidas humanas, projetos de vida e liberdade. Auto-estima, direitos humanos e um meio ambiente saudável em que as crianças possam viver no futuro. Este calculo não leva em conta as periferias que se abarrotam de gente empobrecida a cada dia, a falta de perspectiva da juventude, a violência no campo e na cidade. Este modelo do agronegócio é um mundo sem rosto que já mostra suas mazelas há quarenta anos.

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