26 abril 2008

Para além do governo e do Exército, os índios

Brasília, sábado, 26 de abril de 2008

Henyo T. Barreto Filho
Antropólogo e Diretor Acadêmico do Instituto de Educação do Brasil (IEB)

O arsenal de sandices que marca a cobertura da situação na Terra Indígena (TI) Raposa/Serra do Sol, no extremo nordeste de Roraima, parece não ter fim. Apesar dos espasmos de razão e consideração pelos fatos, a tônica tem sido o desrespeito à inteligência do cidadão — leitor, ouvinte ou telespectador. O mais recente capítulo desse festival de besteiras é a enquete que um veículo da grande mídia lançou esta semana na internet. Nela se apresenta ao navegador incauto uma afirmação e se lhe faz uma pergunta: “O modelo de demarcação das terras indígenas usado pelo governo expulsa os não-índios; o Exército critica. Você concorda com quem: governo ou Exército?”
A enquete é digna de nota por, ao menos, dois motivos. Primeiro, a formulação disparatada que motiva a pergunta. Segundo, o resultado parcial da enquete. Ao tempo em que redijo este texto, o governo leva um couro do Exército, que soma 86% dos 16.852 votos contabilizados. Isso porque, pouco antes, circulou nas redes de pessoas e organizações solidárias aos direitos dos povos indígenas uma mensagem pedindo para dar uma forcinha à posição do governo na referida enquete.
Não entro aqui no mérito da discussão se o resultado de uma enquete como essa tem valor de amostragem judiciosa (embora, é bom destacar, o sistema de votação não permite vários votos de um mesmo computador). Interessa-me, antes, o modo como o leitor é interpelado e como responde a essa interrogação, pois isso revela o poder da mídia não só em pautar – ainda que equivocadamente – a chamada “opinião pública”, mas também produzir “verdades” ao pior estilo: o da mentira tantas vezes repetidas.
A formulação é estapafúrdia por vários motivos, a começar pela referência ao “modelo de demarcação [...] usado pelo governo”, sugerindo tratar-se de estratagema empregado pelo atual governo contra os interesses dos “não-índios”. Ao insinuar isso, a formulação desconhece que o Brasil dispõe de um procedimento jurídico-administrativo de reconhecimento dos direitos territoriais indígenas ancorado na Constituição Federal e em toda uma legislação infraconstitucional correlata (leis, decretos e portarias) que está longe de ser uma invenção do atual governo e que, desde a criação da Funai, há 40 anos, foi modificado cinco vezes — a mais recente sob a batuta do Ministro da Defesa, quando era ministro da Justiça do primeiro governo Fernando Henrique.
Ignora também que, ao longo desse período, o Estado brasileiro — e não o governo — e seu marco regulatório, seguindo tendência global, reorientaram sua forma de se relacionar com os povos indígenas: de uma atuação tutelar e integracionista para uma postura de reconhecimento e respeito à sua autonomia e aos seus direitos originários às terras que tradicionalmente habitam — traduzida tanto na Constituição quanto na adesão do Brasil à Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da ONU, em setembro de 2007. Falar em “expulsão de não-índios” no caso específico de Raposa/Serra do Sol é ignorância ou embuste intencional.
À parte a presença milenar dos macuxis, wapixanas, taurepangs, ingraikós e patamonas na região, o procedimento administrativo de identificação da TI se iniciou em 1992 e se estendeu até a homologação em 2005, atravessando algumas das mudanças supra-referidas no marco regulatório de demarcação de TIs. Um dos principais responsáveis por esses estudos coordena hoje o setor de identificação e delimitação de terras da Diretoria de Assuntos Fundiários da Funai. Um grupo de pesquisadores do Inpa, em artigo publicado em dezembro 2007 na Ciência Hoje, revista de divulgação científica da SBPC, demonstrou cabalmente, por meio de uma série histórica de imagens de satélite, que, mesmo se considerando a já tardia portaria declaratória de 1998 como um divisor de águas entre a boa e a má-fé da ocupação da TI por não-índios, metade da área total das lavouras de arroz visível em 2005 pode ser considerada de má-fé — visto que posterior àquela data.
É temerária, portanto, a ampla adesão dos internautas à suposta crítica do Exército, visto que baseada na ignorância de fatos que a mídia pouco tem colaborado em qualificar. Tendo que optar entre a posição do governo, apresentada de modo equivocado, e a crítica do Exército, fundada em equívoco análogo, não se lhes apresenta o que pensam e fazem os povos indígenas de Raposa/Serra do Sol. Se a eles fosse dado espaço adequado para contar a própria história e um lugar na enquete, de certo se saberia em quem votar e as versões estapafúrdias estariam — estas sim — condenadas à extinção.

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