31 outubro 2008

Mídia sem responsabilidade: Falta informação, sobra ignorância

A respeito da matéria O conto dos quilombos (ISTOÉ – 30 de janeiro/2008, N° 1995, Ano 31) gostaríamos de pontuar algumas questões.
Primeiramente lembramos que a reivindicação pela regularização de territórios quilombolas não surge através da Instrução Normativa do INCRA (IN Nº. 20), como faz parecer a matéria, trata-se de um direito garantido no Artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal. Deve-se considerar que o Artigo 68 do ADTC surge em meio a discussões que aludem a uma dívida da nação brasileira com os afro-descendentes em decorrência da escravidão, discussão essa que ia e vai além da questão fundiária exclusivamente. Tal tema já vinha sendo tratado, juntamente com estudos sobre identidade étnica e etnicidade, pela Antropologia, História e outras disciplinas e começa a ter maior visibilidade na mídia brasileira a partir da assinatura do decreto n° 4.887/2003, o qual trata da regularização de territórios quilombolas e tem por base o Artigo 68. O Decreto 4.887/2003 garante a auto-definição étnica enquanto direito, seguindo legalmente a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) - sobre Povos Indígenas e Tribais, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n° 143, de 20 de junho de 2002 e promulgada pelo Presidente da República através do Decreto n° 5.051, de 19 de abril de 2004. Segundo os Artigos 13 e 14 da citada convenção,
Artigo 13 1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou terrít6rios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação. 2. A utilização do termo "terras" nos Artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de territórios, o que abrange a totalidade habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma. Artigo 14 1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes. 2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse. 3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados.
Assim, o Estado brasileiro deve trabalhar a regularização fundiária de comunidades quilombolas em função de um sentido de territorialidade - território trabalhado como um espaço vivido e referencialmente significante para a sustentabilidade não só econômica, mas também social, cultural e cosmológica do grupo. Essa territorialidade específica é considerada a partir da dimensão simbólica que a comunidade atribui ao espaço já que a construção identitária da comunidade está diretamente ligada ao território ocupado e relembrado. Ou seja, a memória do grupo aciona exatamente o espaço em que vive e viveu na sua narrativa enquanto portadores de uma identidade específica e coletiva.
A matéria fala ainda de “pirataria antropológica” e critica a auto-definição étnica. Sobre isso, esclarecemos que desde a década de 1970, com os estudos de antropólogos interacionistas, como Moerman e Barth, a identidade étnica é definida em termos de adscrição; assim, como nos coloca Manuela Carneiro da Cunha (1986) :
Na realidade, a antropologia social chegou à conclusão de que os grupos étnicos só podem ser caracterizados pela própria distinção que eles percebem entre eles próprios e os outros grupos com os quais interagem. Existem enquanto se consideram distintos, não importando se esta distinção se manifesta ou não em traços culturais. E, quanto ao critério individual de pertinência a tais grupos, ele depende tão-somente de uma auto-identificação e do reconhecimento pelo grupo de que determinado indivíduo lhe pertence. Assim, o grupo (...) dispõe de suas próprias regras de inclusão e exclusão (p. 111).
Além disso, o auto-reconhecimento da comunidade é garantido na Convenção 169 da OIT, a qual determina em seu Artigo 1:
A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção.
Portanto, a legitimidade da auto-atribuição ou auto-identificação étnica enquanto comunidade quilombola está embasada tanto cientificamente, em discussões já de longa data na academia, quanto juridicamente, conforme acima citado.
Outra questão problemática da matéria é a visão de quilombo apresentada. O conceito de quilombo adotado pelo autor da matéria deriva de um conceito que há muito foi superado nas discussões das disciplinas de Antropologia e História: o “conceito congelado de quilombo”. O modelo de quilombo clássico, formado por escravos fugidos e em lugares de difícil acesso era apenas uma das formas possíveis de resistência acionada pelos cativos.
Distanciando-se da idéia de isolamento geográfico e social, temos visto, na discussão acerca da questão quilombola, que na sociedade escravocrata existia um verdadeiro “campo negro” (GOMES, 1996a) , ou seja, uma rede complexa que incluía vários movimentos sociais e articulações econômicas. Rede esta que se baseava desde em informantes dentro das senzalas até comerciantes da região, com os quais os quilombos mantinham relações de compra e venda de produtos. Estudos mostram que os quilombos existentes à época da escravidão estavam muitas vezes ligados, por complexas relações, com a sociedade local. E, ainda, como a resistência escrava abrangia lugares que iam desde os de mais difícil acesso até os próprios limites internos das fazendas.
Com o “fim da escravidão”, muitos grupos de ex-escravos continuaram a formar agrupamentos considerados quilombos como alternativa de sobrevivência à exclusão a eles imposta. Nesse sentido, a própria “(...) apropriação do espaço que garantisse a reprodução de sua existência tornou-se um ato de luta para a maior parte dos afro-descendentes” (BASTOS, 2007) . Assim, fica nítida a dificuldade em congelar na definição clássica de quilombo as várias formas de resistência negra que existiram no Brasil durante e após o período escravocrata. Em 1994, em reunião do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais da Associação Brasileira de Antropologia, foi elaborado um documento sobre o conceito de remanescente de quilombo. Tal documento buscava desfazer os equívocos que esta idéia de remanescente poderia trazer e afirmar a contemporaneidade do termo. Refutava-se já a ligação de quilombo com as idéias de isolamento, populações homogêneas e insurreição, e adotava-se a contemporaneidade do conceito de quilombo, abarcando seu aspecto organizacional, relacional e dinâmico.
Além desses “enganos” em relação à questão mais conceitual que envolve a temática quilombola, a matéria apresenta dados inverídicos. Não é verdade, por exemplo, que o município de São Mateus, no estado do Espírito Santo, está com 80% de sua área demarcada para desapropriação. Atualmente existem dois processos abertos no INCRA para regularização de territórios quilombolas no município de São Mateus. Os estudos apresentados nesses dois processos, que ainda não estão em fase de desapropriação e sim na de contestação por parte dos proprietários e ocupantes, indicam como território pleiteado um total de 16.315,09 hectares. Considerando que, segundo o instituto de terras do Espírito Santo, IDAF, o município de São Mateus possui uma área de 234.580,00 hectares, os dois territórios indicados correspondem a 6,9% da área do município, bem diferente dos 80% citados pela revista! Cabe destacar também que o mapa apresentado, inclusive sem citação de fonte, apenas indica os municípios onde existem comunidades quilombolas, o que não quer dizer que todas as comunidades estejam reivindicando terras, nem que elas estejam reivindicando a área total dos municípios.
Por fim, a matéria fala que o INCRA ignora as terras produtivas e as escrituras existentes dentro de territórios pleiteados por comunidades quilombolas. Outra inverdade. A titulação de territórios quilombolas só ocorre depois da desapropriação, que inclusive é composta de etapa judicial, para a qual se analisa a situação fundiária e cartorial e a questão produtiva dos imóveis, indenizando-os de acordo.
Por todo o exposto, lamentamos que a revista ISTOÉ tenha publicado tal matéria sem realmente averiguar os fatos e sem consultar pesquisadores e órgãos sérios que trabalham com a regularização de territórios quilombolas. Lamentamos a maneira leviana e preconceituosa como deixou tratar a luta de comunidades que estão apenas buscando a garantia de um direito que há muito lhes vem sendo negado. E lamentamos ainda, que a ISTOÉ tenha feito exatamente o contrário do que se propõe, ou seja, desinformado a sociedade brasileira quando deveria informá-la.
Bethânia Zanatta. (INCRA-ES)

Nenhum comentário: