17 agosto 2009

O sonho e a vida na terra de reis.

Sandro Silva


“Inventário” é o documentário recentemente lançado que retrata cotidiano das comunidades quilombolas no Norte do Espírito Santo. Realizado entre 2007 e 2009 com recursos do IPHAN-ES e com produção do Instituto Elimu Professor Cleber Maciel, o filme tem provocado muitos debates nas comunidades do Sapê do Norte, pois seu lançamento coincide com a organização política das comunidades em busca de assegurarem seus direitos aos territórios como está inscrito em suas memórias e determina a Constituição Federal no seu Artigo 68.
Com a fotografia do cineasta Ricardo Sá e pesquisa do antropólogo Osvaldo Martins, o documentário é uma viajem em cores e poemas vivos pelos modos de ser e fazer dos quilombolas envolvidos na produção econômica e cultural de suas comunidades. Os versos lúdicos e críticos dos grupos de Ticumbis e Reis de Bois são o espaço ritual de celebração da riqueza produzida na região mais negra do estado.
Ao redor das dezenas de farinheiras do Sapê do Norte, alimentam-se as bocas e espíritos com a memória que não pode ser ocultada, pois está inscrita nos corpos, nas palavras e nos sonhos desta parcela da população capixaba que é o testemunho e a memória viva do desenvolvimento do estado. É difícil assistir ao documentário e não se perguntar de onde vem a força e a poesia deste povo.
As inúmeras formas de cultivar a mandioca e transformá-la em farinhas, beijus, bolos, gomas, mingaus são parte de uma economia que fez milhares de famílias atravessarem mais de trezentos anos de história. Ainda pouco estuda pela academia, esta economia não se limita a catar moedas, mas às reunir amizades e cantar a vida em festas, causos e embates. Amizades que nomeiam os rios, os santos, os sonhos dos parceiros de ensaio, do desafio da Roda Grande da vida que leva e traz.
O documentário foi exibido em várias comunidades e ligou as pessoas às memórias como a linha paciente do pescador tece a rede. Os olhos atentos de jovens e dos pequenos não desgrudaram das histórias de seus avôs, do jeito de mexer a farinha, de costurar a roupa da festa, de rir de si mesmo e da doçura de uma lembrança. Os comentários sobre os jeitos dos antigos brotavam igual flor sob a chuva, igual flor no manto de São Benedito. A memória viva da vida abundante de ontem percorre cada comentário crítico da situação atual. O filme é um espelho para os quilombolas.
O documentário já é uma referência. Pelos olhos que davam voltas catando as imagens e os sorrisos que cobriam a todos, pela realeza que ele revela em cada gesto dos quilombolas no Sapê do Norte. Ele não é uma encomenda de videoclip ou uma visão de fora das comunidades. Ele foi concebido no calor da farinheira e da memória compartilhada. Ele não banaliza a tragédia que estas pessoas estão expostas pois ele mostra a terra de reis, rainhas e príncipes que constroem todos os dias com suas próprias mãos uma vida mais digna e possível de ser vivida.

Um comentário:

dansesurlamerde disse...

saudade daí.
daudade de ti.
beijo.