14 fevereiro 2011

Entre um "vazio demográfico" e outro, a cidade presépio re-surge


Resenha
Sandro José da Silva

O instigante artigo da professora Celeste Ciccarone do Departamento de Ciências Sociais da UFES, descreve com minúcias as estratégias de mobilização dos agentes e agências de estado contra a população que mora nos morros da cidade de Vitória. Tomando como foco de pesquisa o Morro da Fonte Grande - objeto de disputa por longos anos entre ambientalistas da classe média e a especulação imobiliária -, a realidade analisada pela professora demonstra que um objeto técnico-científico: a “área de proteção”, as “áreas de risco” ou as “áreas de interesse ambiental” não são outra coisa que a materialização de interesses privados disfarçados da retórica democrática.
Um dos exemplos apresentados na pesquisa indica que “a condição de vulnerabilidade dos grupos que ocupam áreas de morros, encostas e mangues de interesse ambiental é retroalimentada pelos princípios da amnésia e da acusação, vinculados à economia moral da pobreza” (p. 11) Certamente outras “áreas de risco” ou “de interesse ambiental” ganharam os rótulos de “áreas nobres”, exatamente porque os nobres devem saber cuidar melhor dos recursos naturais que os “pobres”. Não é exagero da pesquisa a constatação deste cenário. Citando outras situações a pesquisadora mostra como as “mega instalações da Petrobras que invadiram e destruíram uma das últimas áreas de preservação ambiental urbana, reduzida a um jardim, simulacro de parque, que de tão minúsculo precisa de placa de identificação” são vistas como uma forma de superar a condição colonial de capixaba.
O “Projeto Terra Mais Igual” representa um dos artefatos públicos para viabilizar as práticas de exclusão encarregados de produzir a imagem de um espaço público democrático e pacificado. Segundo mostra a pesquisa, é na produção moral da pobreza que reside o maior sucesso dos programas da Prefeitura de Vitória - substituindo a visibilização do conflito e da necessidade de debates públicos pela carnavalização da pobreza e desmoralização dos sujeitos. Ao contrário da invisibilização, criticada pelos movimentos sociais, poderíamos pensar as políticas públicas da PMV como a visibilização excessiva que termina por tornar hegemônica uma dada interpretação do “outro”, a partir de “si” mesmo.
O estranhamento da pesquisadora quanto à “celebração dos gestores municipais como os principais artífices das políticas sociais e do rumo das mudanças que se orientam para as idéias de gerenciamento e comunicação empresarial” (p.33) é um dos sinais evidentes de um fenômeno ainda pouco estudado por nós. Trata-se do cenário marcado pela competição entre empresas pelo direito de impor sua visão hegemônica em lugares estratégicos da cidade.
Quando fizemos a pesquisa no Morro de São Benedito também em Vitória[2008], o que mais chamou nossa atenção foi a transformação da pobreza em commodities por parte das empresas que disputam o assistencialismo no bairro e criam novas formas de “governo do outro”. Aos poucos a cidade presépio vai criando outra cidade cercada de preconceitos de todos os lados onde a poluição, que produz mais “áreas de risco” do que as políticas públicas da PMV conseguiriam ver, sequer são tratadas publicamente. No fim, o que importa é que a paisagem fique livre para o olhar sensível de quem passa no calçadão e as áreas de risco se multipliquem para caber o preconceito e os negócios de quem governa.

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