05 dezembro 2011

Patrimônio etnográfico e ciclos econômicos


Sandro Silva > antropólogo e professor na UFES
saandro@gmail.com

Quando a SECULT me propôs o tema “Patrimônio etnográfico e ciclos econômicos” eu senti que se tratava de um desafio do qual eu não podia abrir mão. Quando fiquei sabendo que se tratava de um público de professoras(es), me senti mais estimulado e quando vi que era em São Mateus, o convite me pareceu uma honra. Trabalhei com as populações indígenas, religiões de conversão e afro-brasileiras e populações afrodescendentes na cidade e no campo, e considerei que poderia compartilhar alguns destes caminhos com público tão seleto. Então, quero fazer um convite ao debate de idéias, sempre indicando que trata-se aqui de um espaço para nos interrogar livremente, coisa que o ambiente escolar muitas vezes não nos permite e mesmo nos desencoraja.

O tema e o método
Meu tema tem haver com realidades muito próximas, mas que são tratadas como distantes. O que meu trabalho tem haver com Patrimônio e o que eu tenho haver com os ciclos econômicos? Vamos falar de identidades que aprendemos a defender e que para nós são como uma pele, a linguagem com que aprendemos a nos relacionar, viver em família e defender nossos ideais. Assim, teremos que “estranhar o familiar” se quisermos nos conhecer um pouco mais. Ou seja, temos que assumir uma posição de conhecimento em que o “familiar” vai se tornar “estranho”. Por um breve espaço de tempo, os nomes perderão sua realidade e os valores, a eles atribuídos, serão por nós questionados. Vamos ficar por um momento sem o chão que aprendemos a pisar, para compreender que há outros caminhos.



A sociedade e suas interações
Todos vivemos conectados por relações sociais. Viver em sociedade é manter estas relações compreendendo que elas mudam, agem umas sobre as outras e requerem de nós a correspondência constante. Este conjunto de ações que se revelam na vida social podemos chamar de interação social. A interação social é o que nos torna seres humanos desde os primeiros anos de vida ou mesmo dentro da barriga de nossa mãe onde nome, personalidade e até mesmo humor nos é atribuído sem mesmo termos nascido.
Há diferentes níveis de interação social. Desde aquelas mais amplas que nos leva a falar de sociedades e nações, até aquelas que nos falam da vida na esquina, das conversas de boteco, no cafezinho do intervalo das aulas. Estamos interagindo mesmo quando ficamos sós com os nossos pensamentos.
Interagir é levar em conta o que o Outro pensa, sente e faz com tudo isso o tempo todo. Muitas vezes, no entanto, as interações são fruto preconcebido do que seja este Outro. Por exemplo, os governantes sabem que não podem entender o que cada pessoa considera apropriado para um bom governo, então, eles imaginam que determinados símbolos podem significar a unidade da nação e criar, em torno dela, alguns consensos que lhes permitam falar da unidade nacional.
Assim, cremos que somos brasileiros porque nascemos no Brasil. Através de um conjunto de documentos e ações jurídicas nos tornamos cidadãos brasileiros. Também cremos que somos brasileiros porque nascemos dentro de um perímetro denominado “fronteira geográfica” que pode ou não coincidir com o espaço físico do Brasil. Todas estas operações de se tornar brasileiros acaba por nos fazer esquecer o que é o Brasil. A imaginações sobre o que é o Brasil e os brasileiros, simplesmente desaparece de cena. Nós “naturalizamos” estes lugares e passamos a viver neles.
A imaginação torna-se um dos aspectos centrais na construção das interações sociais porque ela cria um espaço confortável para que nós possamos viver nele sem ter que nos perguntar o tempo inteiro sobre nossa identidade. Seria bastante difícil ter que acordar todos os dias e, ao se olhar no espelho, fazer o download do programa que nos lembra de ser brasileiros. A gente apenas veste a roupa, ouve o noticiário tomando o café da manhã e vai para o trabalho.
Mas, a imaginação não é uma mentira. Ela é verossímil, ou seja, nós apenas cremos que Tiradentes foi o precursor da República, que a Amazônia é o pulmão do mundo e que o Plano Real salvou o país da falência. A imaginação é uma espécie de acordo do qual nos esquecemos coletivamente. Assim vivemos melhor, deixando aos especialistas a minúcia do que isso realmente significa, e nos ocupando de nosso cotidiano. Mais ou menos!

O espaço e a memória
No tema que proponho discutir aqui “Patrimônio etnográfico e ciclos econômicos”, a imaginação é um tema central. É impossível falar de “patrimônio”, de “etnografia” e de “ciclos econômicos” sem antes considerarmos que estas são palavras socialmente construídas. Também, devemos levar em conta que elas foram imaginadas segundo critérios próprios e projetos de sociedade específicos, não sendo o resultado de um pensamento universal e natural, mas muitas vezes o resultado de ações violentas e imposição de modos de pensar hegemônicos.
Assim, ao pensar nestas palavras tão significativas, o que vai nos interessar aqui é “como” e “por quem” elas foram imaginadas e quais as consequências desta imaginação para nós hoje. Patrimônio, Etnografia e ciclo econômico de quem e para o que? Estas perguntas são fundamentais para não cairmos na naturalização da história e nos tornar reféns do senso comum.
Ao nascermos está em jogo o desenvolvimento de um novo ser, mas dentro de determinados constrangimentos socialmente determinados. Por exemplo, somos mandados para a escola com a justificativa de aprender e sermos educados. Mas, o que isto realmente significa? Junto com os conteúdos escolares aprendemos também os ritos sociais que nos tornarão aptos a desenvolver os papéis masculinos e femininos. Aprenderemos que a equação do segundo grau só se aprende depois da oitava série, mas também que a turma “A” do matutino tem melhores alunos do que a turma “D” do noturno.
Em resumo a escola nos ensina muito mais que equações, regras gramaticais ou os efeitos de um grito com uma espada erguida às margens do Rio Ipiranga. Ela nos faz experimentar a classificação das pessoas ao longo do tempo e do espaço, naturalizando os lugares nos quais as pessoas estiveram, estão e estarão. Ela nos ensina sobre como as instituições nos ajudam a entrar na sociedade e jogar o seu jogo. Mas, para isto devemos aprender um pouco que isto se dá no plano da memória coletiva.
A memória se transforma para nós não apenas como o ato de lembrar, mas os conteúdos e as formas pelas quais lembramos coletivamente. Entramos no “jogo da vida”, assumindo algumas memórias como naturais e outras como não naturais, é fundamental para que a sociedade funcione. Para isto formulamos algumas palavras-chave como “formação do povo” que vai nos orientar basicamente nos caminhos históricos e sociais que constituíram a “nação brasileira”. De repente estamos repetindo em coro que a sociedade brasileira é formada por três raças, etc. Lembremos que isso é uma imaginação naturalizada, com resultados bem definidos.
Assim, a vida da nação é o resultado desta imaginação organizada pela memória coletiva. Nos emocionamos com a imagem do gol do Pelé, os mais velhos ainda discutem se a Ditadura Militar foi “Golpe” ou “Revolução” e os jovens de menos de 30 anos são educados dentro do sonho do Pré-Sal. Getúlio Vargas foi o “pai da nação” porque ele a reinventou após várias décadas de tentativas vãs dos primeiros republicanos. Até mesmo a sua morte se transformou, não em um evento individual, mas em um rito da nação. Pensar no “Patrimônio etnográfico e ciclos econômicos” nos leva ao centro onde a imaginação da nação se encontra, ou seja, ao coração das relações de poder.

Imaginação e poder
Se as interações são fruto preconcebido do que seja este Outro, como nos livrarmos destes preconceitos? O primeiro passo talvez seja conhecer as formas pelas quais este Outro aparece nas nossas imaginações ou, melhor dizendo, como fomos levados a imaginar este Outro. Vou fazer referência a dois grupos sociais que foram imaginados no contexto de São Mateus e procurar perceber de que maneira eles foram imaginados. Negros e italianos serão nossos seres imaginados a nos guiar pela desconstrução e desnaturalização destes Outros.
Para desconstruir estes “sujeitos históricos” é preciso desconstruir o tempo e o espaço nos quais eles foram fixados pela nossa imaginação. Parto do pressuposto de que a ocupação do espaço por populações humanas é fruto de alguma ordem: histórica, econômica, social, mas, sobretudo pela imaginação delas. No caso destes dois grupos, os projetos de nação que estão ligados à eles são distintos, pois eles ocorreram em momentos distintos da história. Cada um deles se construiu com uma imaginação distinta no espaço, produzindo lugares também distintos, mas que se tocam em determinadas ocasiões. As identidades negras e italianas são objeto da ação humana e o seu resultado estético e político é fruto das interações entre grupos e indivíduos.
O segundo pressuposto é que não há o Outro sem um Nós, ou seja, se como mostrei acima, as interações definem a vida social, em algum momento no estado do Espírito Santo, “ser negro” é o resultado de interações com o ser “italiano” e vice-versa. Isto quer dizer que, de um ponto de vista antropológico e histórico a negritude e a italianidade são produzidas como condições históricas e não como o resultado das essências objetivamente demonstráveis de cada grupo ou a suposição de uma raça, mas sim de identificações. Os cabelos loiros não se definem em relação aos cabelos loiros, mas às propriedades de outros cabelos.
O terceiro é que eles foram imaginados por agentes e conjunturas institucionais e históricas. Italianos e negros são invenções de estados nacionais preocupados em administrar a diferença, ou seja, instituições preocupadas em contar a história da “frente para traz”, naturalizando os “fracassos” e os “sucessos”. Como estes grupos foram classificados, guarda relação com o “como” eles foram criados por conjunturas histórias e econômicas e relações de poder específicas. No Brasil só conseguimos pensar o “negro” ligado à escravização. Não o pensamos como um agente da democracia moderna. As políticas públicas sempre mencionam este “lugar eterno” que os ex-escravos devem ocupar no imaginário nacional. Assim, nos acostumamos a falar e pensar “negro escravo” e não “africano escravizado”. Condição social não é identidade social. O processo de nacionalização destes grupos fixou um lugar que reluta em sair de nossas memórias.
Os negros receberam esta classificação antes mesmo de chegarem ao Brasil escravista e antes mesmo do Brasil existir. Estamos falando de grupos que habitam um continente com muitas identidades e línguas que foi colonizado e dividido em países de forma violenta. Já os italianos receberam este nome após a unificação de várias pequenas republiquetas em um estado nacional que hoje se chama Itália, no século XX. Estas relações precisam ser compreendidas para chegarmos a entender quais projetos e quais relações de poder a constituíram. No Brasil, os italianos passaram a significar uma nação e os negros, uma cor da pele e uma raça. É comum dizer-se descendente de italiano, mas raro dizer-se descendente de africanos. A África foi banida do imaginário da nação brasileira senão quando o assunto é escravidão negra. Esta redução sociológica dos dois grupos foi decisiva na memória nacional.  Ela pode nos dar uma pista do porque alguns conflitos permanecem vivos nas trajetórias destes grupos a reivindicar soluções nas novas conjunturas.
Deste ponto de vista, pensar-se como “negro” é tão artificial quanto “italiano”. Estas categorias de inclusão tiveram um momento de violência simbólica que foi incorporada por alguns grupos, mas não por outros. Mas isto não quer dizer que eles não sejam vividos como realidades muito concretas e que não despertem emoções tão fortes a ponto de pensarmos que elas podem ser apresentadas publicamente em reivindicações políticas e direitos sociais. Pelo contrário, estas identificações são vividas como verdades bastante naturalizadas.

Desnaturalizando a imaginação
Como negros e italianos são apresentados no imaginário mateense? Nada melhor que recorrer aos documentos oficiais e ao imaginário para ver como as relações de poder classificam as identidades. Sugiro abaixo uma reportagens sobre políticas públicas e duas matérias que procuram escrever a história de São Mateus. Nela poderemos visualizar as formas pelas quais as identidades são construídas a partir de imaginários distintos sobre quem é quem na “formação da cidade”.
Meu objetivo é compreender os instrumentos do imaginário nacional a “administrar a diferença”, ou seja, por que reduzir as possibilidades infinitas de identificação social à “democracia racial” como o ideal de paz e convivência social? Será que ela não fala um pouco do desejo de controlar a diferença? Quem pretende escrever a história quer sempre ter à suas mãos os instrumentos de controle do Outro?
A “democracia racial” não consegue seus objetivos porque há histórias subterrâneas que inferiorizam determinados grupos na construção da história dos ciclos econômicos e que levam sempre à reação e à resistência. Os indígenas, por exemplo, sempre são retratados em guerra com o “colonizador” que é classificado como “desbravador”, “pioneiro”, menos como assassino. Aos negros africanos, que tem mais de 300 anos de história na cidade, é reservado o tímido rótulo de produtores de farinha e rebeldes que não queriam trabalhar. Ao contrário, os brancos são retratados primeiro como “colonizadores” e depois como os únicos com engenho o suficiente para tirar a sociedade mateense de sua estagnação. Rapidamente a “democracia racial” se transforma em naturalização do domínio de um sobre os outros e as diferenças econômicas, fruto da expropriação e exclusão, são justificadas pela “capacidade de cada um”. O resultado é que temos uma participação ínfima de negros na condução da sociedade, o que restringe certamente a criatividade e aumenta os muros ideológicos a justificar a diferença.
Recorrer à justificativa dos “ciclos econômicos” é mais uma forma de escolher um angulo da história que autoriza a permanência das relações de dominação, sejam elas simbólicas, sejam efetivadas por ações da administração pública e seus agentes. Aos “ciclos econômicos” foram juntadas o desejo de dominação e justificação da diferença de forma hierárquica. Esta opção colocou determinados grupos como naturalmente no comando da sociedade mateense, enquanto outros servem a eles.
Olhemos para história do país e poderemos ver os diversos conflitos gerados pela defesa dos “ciclos econômicos”. Um dos exemplo é observado entre estado e populações europeias nas guerras mundiais, onde elas eram proibidas de usar sua língua e seus costumes em função da unidade nacional. Ou as Ações Afirmativas que buscam reverter os danos de séculos de escravização e produzir uma sociedade mais igualitária no presente e no futuro para todos, negros e não negros, mas que só encontram teóricos racistas de plantão encastelados em seus lugares de poder. Precisamos nos libertar destes pequenos lugares de poder que são alimentados pela ignorância e só produzem medo.



Box 1 – Ensinando a ser negro?

“Professores da rede estadual recebem formação sobre a identidade cultural dos negros
Capacitar professores da rede pública estadual de ensino para que possam inserir nas disciplinas que lecionam elementos da cultura e da história afro-brasileira. Esse é o objetivo do programa “Identidade Cultural do Negro” que será implantado na rede estadual de educação a partir de um acordo de cooperação técnica entre a Secretaria Estadual de Educação (SEDU), as prefeituras de Jaguaré, Conceição da Barra, São Mateus e Pedro Canário e a empresa Aracruz Celulose. O convênio será assinado nesta segunda (01), às 15h, no Pólo Universitário de São Mateus. O Acordo prevê que os professores desses quatro municípios participarão, a partir do dia 20 de agosto, de um curso com duração de 90 dias. Estarão envolvidos 293 profissionais do magistério que lecionam as disciplinas de Historia, Língua Portuguesa e Educação Artística para 24.857 jovens do ensino fundamental e médio, em 48 escolas, 30 estaduais e 18 municipais. Os professores serão capacitados através de uma série de palestras sobre a questão racial na sociedade, distribuição de livros sobre a história dos negros no Espírito Santo, pesquisas bibliográficas e pesquisas de campo. Também será realizado um concurso de redação voltado para os alunos das oitavas séries das escolas envolvidas, cuja premiação será um computador para cada aluno vencedor em seu município e sua escola.” (Fonte SEDU-ES. 01/08/2005)

BOX 2 – Onde acaba e começa São Mateus?
“No dia 13 de maio de 1888, acabou a escravidão no Brasil. Nesse mesmo ano, chegou ao Porto de São Mateus o primeiro grupo de imigrantes italianos, formado por aproximadamente cinqüenta famílias. Elas foram encaminhadas para os lotes demarcados no vale do córrego Bamburral, para a formação do núcleo de Santa Leocádia, a cerca de 20 km da sede do município. Essa região estava infestada de mosquitos que transmitem malária. Isso provocou a morte da metade dos primeiros colonos italianos. No primeiro mês não fizeram outra coisa a não ser enterrar os mortos.
Antonio Rodrigues da Cunha, o Barão dos Aymorés, conseguiu levar muitas famílias de imigrantes para trabalhar em suas terras como também o fizeram Constante Sodré e outros fazendeiros que se instalaram nas regiões mais altas, em terras mais apropriadas para a implantação da cultura do café. Utilizando a mão-de-obra italiana, Antonio Cunha pode então completar o sonho de formar sua grande fazenda na Serra dos Aymorés. No entorno do barracão utilizado como entreposto por Antonio Cunha, localizado a aproximadamente 30 km acima de sua fazenda na Cachoeira do Cravo, formou-se um núcleo urbano. Os italianos o denominaram Nova Venécia, para lembrar a cidade de Veneza, capital da região do Veneto, na Itália, de onde veio a maioria dos imigrantes”. (Fonte Wikipédia)




BOX 3 – Nós e os Outros
(...) O sapê tornou-se uma praga dominando essa região que ficou conhecida pelo nome de "Sapê do Norte". 
Os negros do Sapê do Norte, descendentes de escravos, viviam isolados, sem nenhum tipo de apoio oficial. Quase todos analfabetos, sem estradas, sem voz, sem vez, abandonados à própria sorte, viviam da fabricação de farinha, do plantio de pequenos roçados, da caça e da pesca. 
Os imigrantes [italianos] e seus descendentes, pouco a pouco foram ocupando algumas terras, comprando outras, no lado sul do rio São Mateus, entre São Mateus e Nova Venécia e avançando para o oeste. A mão-de-obra imigrante era utilizada na derrubada da mata para extração da madeira e implantação das lavouras de café. Também eram contratados para os serviços de construção civil, pois muitos eram pedreiros e carpinteiros. Favorecidos pela cultura européia, os imigrantes e seus descendentes mantinham uma vida mais regrada e com mais envolvimento religioso. Por terem mais conhecimentos, podiam produzir quase tudo de que necessitavam. Assim os italianos compravam apenas o querosene para iluminação, o sal, os tecidos e algum remédio, o que lhes garantia algum tipo de poupança, enquanto os negros precisavam comprar quase tudo, pois lhes faltava o conhecimento para produzir.(...) (Fontehttp://www.saomateus-es.com.br/site/)


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