Caruru da vovó

Uma estudante de
Nutrição da capital de Vitória (ES) deveria fazer, como avaliação rotineira,
um cardápio para um paciente com “intolerância a lactose” que fosse rica em
cálcio. Ao recordar que os avós em Itaúnas [norte do estado do Espírito Santo] receitavam
um guisado de Caruru (Amaranthus viridis) como alimento que fortalecia os ossos, ela resolve
pesquisar as propriedades nutricionais da planta para saber se poderia
aproveitá-la no cardápio. Eis que ela descobre que a planta é excelente fonte
de Cálcio: uma porção chega a ter três vezes mais o mineral que um copo de
leite. Contente, ela submete os resultados à professora que o recusa
veementemente. O cardápio “ficou regionalizado”, argumenta a professora, ao que
a aluna retruca que o paciente não foi especificado. A professora mantem o veredito
e o trabalho não é aceito.
Aparentemente
prosaico, este evento sugere uma série de questões tanto educacionais, quanto
das relações entre ciência e saber popular. Em primeiro lugar, a hegemonia que
o saber escolar adquiriu de sua associação aos saberes médicos torna
completamente opaca, senão obscura, a apreciação de outras formas de saber. Em
segundo lugar, até certo ponto o que estava em jogo era a autoridade deste
saber médico que, sem muitos argumentos, apenas reprova outros saberes. E, por
último no meu argumento, o que a professora define como “regional” é, na
verdade, uma forma de excluir outras formas de promoção da alimentação saudável,
de baixo custo e, mais, associada à diversidade cultural. Isto sugere que os
cursos que lidam com esta interface entre ciência e alimentação estão longe de
compreender a eficácia da diversidade cultural, senão como folclore de nossos
avós.
Qual alimento não é
regional? O que é regional? Ou, o que é regionalizável? Ou, quem é que
regionaliza e por que? A regionalização tem haver com classe social? Estas
questões não passam pela cabeça da professora, para a qual o mundo é plano e
compartimentalizados. Ademais, a repartição deste mundo é uma das
características importantes para se compreender o que significa a
“regionalização”. Talvez a professora não estivesse se referindo a um
determinado espaço geográfico, mas um lugar que os saberes e sua apropriação devam ter.
A razão disto é que
a imagem comum atribuída ao Caruru é de que se trata de uma "erva daninha" pois nasce em lugares adversos ou que se trata de “um potente alimento,
capaz de colaborar com a desnutrição das populações subdesenvolvidas”. Ora, ou
as populações humanas são iguais em suas carências nutricionais, ou sua
inserção como subdesenvolvidas as colocam em um patamar diferenciado de
alimentos a elas atribuído: pobres, portanto, daninhas? Quero crer que não!
Eu me pergunto se as crianças obesas e desnutridas
das classes médias não mereciam um refogado de Caruru ao invés de um pacote de
batatas fritas sabor churrasco. Tais crianças foram submetidas à esta
arrogância científica que, na verdade, serve à indústria de produtos alimentícios
e à medicalização da infância. A professora talvez imagine que elas devam
consumir cápsulas de vitaminas como complemento/correção alimentar, pois estas
não são regionalizáveis e não suspeitas por virem de um médico e não da vovó.
Nenhum comentário:
Postar um comentário