Com extrema preocupação e indignação acompanhamos mais um novo e triste capítulo no ano de 2006 da história de violências contra os povos indígenas Tupinikim e Guarani, no Espírito Santo. Após décadas de agressões a estas populações, expropriadas e expulsas de seus territórios, o projeto insustentável da Aracruz Celulose parte agora, para o confronto contra os índios, expondo a intolerância, o etnocentrismo e sinais claros de genocídio dentro do Estado democrático de direito. [1]
Se concordarmos em um ponto, é sobre a violência do projeto de nação brasileira contra os índios. Pensamos que este cenário é coisa do passado e que superamos tudo isto seja porque não somos mais tão violentos, ou pior, porque eliminamos todos os índios. As evidencias, no entanto, são outras: as populações indígenas lutaram para ser hoje protagonistas dos seus direitos no mundo todo, afirmando suas identidades, suas formas de organização, seus valores e seus projetos de futuro. Os rumos do mundo contemporâneo apelam para a pluralidade e o respeito da diversidade.
Nos últimos quarenta anos da luta dos índios para a retomada de seus territórios, para a Aracruz Celulose o "conflito" se restringia aos papéis, leis, relatórios e tensões entre setores do poder público e a empresa. No atual cenário, a empresa parte para a expressão pública declarando-se abertamente contra os índios e seus projetos de auto-afirmação e sustentabilidade de seus territórios. Com a publicação e ampla divulgação da cartilha "A Aracruz e a questão indígena no ES", a realização de palestras em escolas públicas e privadas, a promoção de passeatas insuflando a discriminação, a empresa desencadeia uma série de ações questionando as identidades indígenas. Tomando para si a resolução do conflito, a empresa afirma que a justiça é instável ao garantir direitos indígenas e não atendendo os seus interesses econômicos e que estes direitos indígenas, garantidos pela Constituição, são contestáveis.
No contexto capixaba, a síndrome de "patinho feio" do Sudeste, fez avançar e legitimar uma versão predatória do capitalismo sobre os recursos naturais, e populações tradicionais, desterritorializando o centro do poder econômico e político, sem sequer levantar suspeitas nos poderes públicos, pois financiador de campanhas e projetos políticos.
“República da celulose”
Na violência discriminatória proposta pela empresa, as populações indígenas no Espírito Santo são enquadradas em três categorias: os índios estrangeiros, os falsos índios e os índios mortos. Todas estas teses são cada uma a sua maneira, versões do delírio racista da empresa, que corre solto no silêncio dos governos locais que proclamam a democracia, e desafia a inteligência e o poder das instituições encarregadas da defesa dos direitos étnicos no Brasil.
Comecemos pelos "índios mortos". Segundo a vontade da empresa, os índios, no Espírito Santo, são “coisa de arqueólogos”, pois estão todos mortos. No limite, merecem um museu de cera sobre "o que foram" as populações no estado, à moda dos museus norte-americanos que, controlando o passado destas populações, tem por finalidade dizer o que elas não são, hoje. Em primeiro lugar, os índios não estão mortos. Pelo contrário o país tem avançado no reconhecimento da população indígena, o que mostra o aumento da população jovem e da expectativa de vida dos nascidos, nos censos indígenas de caráter nacional.
A tese dos índios estrangeiros revela uma maneira interessante e cuidadosamente racista de colocar a questão. Em primeiro lugar a empresa sempre argumentou que os Guarani seriam índios do sul do Brasil e que por isso não lhes caberiam direitos aqui no Espírito Santo, desconhecendo a literatura científica sobre a história deste povo e sua relação com o território e suas formas de territorialidade. Na cartilha, também os Tupinikim são enquadrados como índios estrangeiros, porque alega-se que teriam sido originários da Bahia. Aqui, além de reiterar o desconhecimento da literatura científica, o argumento do "estrangeiro indesejável" forjado pelos governos nacionalistas se inverte em função dos interesses empresariais. Toda a discussão da formação da República foi travada para admitir os estrangeiros desejáveis - alemães, italianos, etc. - e recusar os indesejáveis - negros norte americanos, chineses, japoneses -, com o intuito de garantir a inclusão do Brasil no rol das nações civilizadas. Getúlio Vargas, por sua vez, estabeleceu cotas para trabalhadores nacionais, pois via com receio a formação de uma classe trabalhadora fora dos moldes nacionais.
A Aracruz Celulose é multinacional e tem como emblema “Nossas raízes tem futuro (do eucalipto, do modelo de desenvolvimento, da predação?)”. No entanto, ela parece ressuscitar um anacronismo nacionalista invertido que coloca em dúvida a hegemonia na definição do Estado nacional: em sua versão, não é ela, mas os índios é que são estrangeiros no país que ela criou e que poderíamos denominar de “República da celulose”, onde todos tem que ser iguais, porque clones, aos moldes dos eucaliptos que ela planta sem parar, devastando toda forma de diversidade.
Assim, a lógica do capital faz com que a empresa crie um discurso de paz jurídica para seus negócios como pode ser constatada no site da empresa:
"A Aracruz busca uma solução estável no relacionamento com as comunidades indígenas, pois as reconhece como importantes partes interessadas. Uma das premissas para essa solução é a segurança jurídica, para que no futuro não ocorram novas ampliações da reserva. Como a disputa não pôde ser resolvida pelo diálogo, deve sê-lo pela Justiça, que é o único caminho de se alcançar segurança jurídica. O diálogo continuará a ser a ser fundamental para a construção de relacionamento duradouro entre as partes " (trecho da Cartilha)
O argumento da paz para a "segurança jurídica" abre um capítulo perverso do direito constitucional, pois coloca em pé de igualdade dois sujeitos de direito diferentes: o direito étnico e o capital privado. O apelo à justiça processualista emerge como uma saída, quando na verdade é uma esfera de resolução clássica e danosa de litígios desconsiderando os direitos fundamentais. Neste sentido as intervenções do Ministério Público revelam que, a despeito dos direitos humanos e da proteção constitucional aos índios, eles são considerados "parte" no processo, devendo se comportar segundo um estatuto jurídico estranho a sua condição étnica, ou seja, se a tutela do Estado trata os índios como relativamente incapazes, por outro lado eles são tratados como sujeitos de um litígio assimétrico.
Desta maneira, vários elementos contribuíram para que o processo culminasse com a atual situação. Morosidade da justiça, subordinação da política e do legislativo estadual e municipal aos interesses da Aracruz Celulose, desconhecimento do poder público sobre a questão indígena, invisibilidade dos direitos étnicos das populações indígenas, descaso dos poderes municipais com as demandas étnicas, e uma imprensa francamente favorável aos interesses da empresa. Esta conjuntura poderia ser resumida numa convergência entre público e privado no novo estado empresarial capixaba.
Na primeira semana de dezembro trabalhadores da Aracruz e empreiteiras atacaram fisicamente um grupo de índios que reivindicavam suas terras. A liberdade com que vereadores e o discurso discriminatório da empresa ganham espaço público aumenta a cada dia as ameaças públicas que os índios vem sofrendo no município de Aracruz, tornando temerário a expressão dos seus direitos fundamentais.
A Cartilha, já condenada pelo Ministério Público como "abusiva" e "preconceituosa" após várias manifestações dos índios, é um resumo da atuação da empresa nos últimos trinta anos. Com uma formulação retrograda argumenta-se ali que os índios são mentirosos e que sua maior mentira é a de querer ser índios. A argumentação subjacente da empresa, e mais grave, é que o Estado também é mentiroso ao reconhecer e declarar que as terras são terras tradicionalmente ocupadas por indígenas.
Se a empresa é uma lição de globalização da economia, ela também é uma lição de uma nova construção pública do Estado de direito, pois questiona a autonomia do Estado brasileiro em conferir aos seus cidadãos os direitos fundamentais como o direito de se auto-determinarem. É óbvio que se trata de uma questão meramente econômica, mas da maneira com que ela vem sendo conduzida podemos tirar lições para o presente e o futuro com mais justiça.
Em primeiro lugar a definição jurídica dos índios passou, segundo a nova carta de 1988, a ser uma questão que está subordinada aos próprios índios. A imagem colonialista do Estado brasileiro a que a Aracruz Celulose estava acostumada quando se instalou aqui na época de chumbo da ditadura é uma aberração contra a nova perspectiva do direito internacional. Na cartilha citada a empresa se delega o direito de dizer quem é e quem não é índio, dizendo que uns são "aculturados", categoria há tempo em desuso e que nega arbitrariamente a evidente contemporaneidade dos povos indígenas e que outros não são daqui, sendo provenientes do sul do Brasil . A questão é que a empresa não tem nenhum direito de dizer quem é quem em se tratando dos povos indígenas. Se esta é uma prática dos países "modernos" ela se mostrou até agora apenas uma forma de racismo gerando violência e mais violência que atenta contra a dignidade da pessoa humana, como dispõe o artigo primeiro da Constituição.
Em segundo lugar, o argumento que defende as identidades indígenas é uma forma de questionar o poder da empresa e o modelo de desenvolvimento capixaba baseado na predação, no empobrecimento e da exclusão social. Passados mais de quarenta anos de violência da Aracruz, os índios permanecem irredutíveis em seus direitos que se fundamentam na vida digna de seus familiares e das gerações futuras. Em tempos de “cultura da paz” o governo do estado, não poderia escolher parceiro mais inapropriado para ser o símbolo do desenvolvimento capixaba. O que a cartilha da Aracruz pretende é destruir de vez a auto-determinação desses povos, atentando contra a carta constitucional brasileira e a convenção n.169 da OIT e abrindo um caminho largo ao seu modelo predador. Embora tenha conseguido isto com a grande maioria dos operários que foram abandonados e mutilados ao longo destes quase quarenta anos, incentivando outra violência, na eclosão de novos conflitos, as populações indígenas não abrem mão de seu modo de vida que representa um dos fundamentos de sua identidade e da riqueza de um Estado pluralista.
Em terceiro lugar o conflito com a Aracruz Celulose é parte do modelo desastroso de ocupação de terras no Espírito Santo. Um dos argumentos de que se utiliza a empresa é o fato de ter comprado de "dezenas de proprietários [que] estavam nestas terras há várias gerações, muitos advindos da imigração italiana ao Brasil." Ora, a documentação colonial mostra claramente como estes proprietários foram beneficiados por uma legislação que retirou direitos indígenas em favor da "modernização" da economia capixaba através de incentivos financeiros e de uma legislação favorável a lógica da propriedade privada como foi a Lei de Terras de 1850. A memória da luta pela terra indígena recua a estes eventos e não apenas aos planos desastrosos do monocultivo do eucalipto. Quando pleiteiam seus territórios os índios estão olhando para uma ferida que foi aberta há muito tempo e que as políticas públicas e a violência empresarial só fazem aumentar.
Diante da destruição da diversidade social e da natureza, algumas questões devem ser retomadas: quais os resultados da CPI da Aracruz, arquivada há anos na Assembléia Legislativa do Espírito santo? Por que o processo de certificação ambiental da empresa não passa por um controle mais rigoroso do Ministério Público Federal? Quem é o responsável pelo passivo ambiental e humano das décadas de destruição?
[1] Documento encaminhado pelo Departamento de Ciências Sociais à UFES e aprovado em reunião do Centro de Ciências Humanas e Naturais.
Fotos retiradas de “A Aracruz e a questão indígena no ES - Agosto de 2006” in: www.aracruz.com.br
Um comentário:
Gostaria muito de informações sobre esse tema, em especial dessa cartilha, mas não encontrei nenhum e-mail pra me comunicar diretamente.Urgente!
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