26 julho 2010

Onde o muito é bem pouco.

A série "Desafios do Espírito Santo", publicado no jornal A Gazeta (25/07/2010) apresenta em destaque os contrastes do desenvolvimento do estado. Segundo a matéria publicada em 24 de julho existem 950 mil ca-pixabas vivendo na pobreza absoluta e 314 mil e vi-vendo na pobreza extrema. Deixando de lado os eufemismos “extrema” e “absoluta”, uma soma rápi-da nos leva à cifra de 1.264.000 capixabas vivendo em condições de pobreza.

A matéria é um retrato contundente de que as elites capixabas não conseguiram até agora desenvolver um modelo de desenvolvimento da sociedade capixaba. Décadas de retórica de desenvolvimento não conseguiram arranhar as estruturas que mantém a sociedade desigual. Não é à toa que a matéria, que promete outras edições, começou pela fronteira norte, vista como alheia ao centro econômico do poder. No entanto a distância real vem sendo preenchida por sistemáticas políticas de exclusão do campo, que violam Direitos Humanos de todos os tipos em função do agronegócio. De fato, a fronteira é um mal necessário à manutenção do modelo de exploração da natureza e no Espírito Santo ele se alimenta da lógica internacional das commodities, fingindo um localismo preocupado com os pobres.
Embora às vésperas de uma eleição e do jogo da corte que se arma, a matéria “Desafios do Espírito Santo” deveria ser lida nas entrelinhas ou em seu negativo. Ela revela mais sobre o discurso de seus protagonistas que de fato denuncia “as mazelas da sociedade”. Ela é mais um capítulo para reconstruir o imaginário reden-tor do capital, onde o “desafio” deveria ser a capaci-dade das elites se olharem no espelho e perceberem que tipo de sociedade elas estão construindo.
As análises feitas pelo jornalista, embora sobrevoem a questão da pobreza, apontam questões importantes como, por exemplo, ao se referir aos cafezais de Mantenópolis e Pancas, indica que o que resta aos pobres é “colher café nas terras dos grandes proprietários, sujeitando-se a subempregos e relações trabalhistas que, em alguns casos, remetem aos tempos feudais” ou “sem perspectiva de futuro, muitos jovens prefe-rem ir ganhar a vida como imigrantes ilegais na Europa ou nos Estados Unidos”.
Muito bem, mas a matéria é uma armadilha. Especial-mente porque coloca em contraste situações que podemos descrever como complementares na velha fórmula: se existem ricos é porque há pobres ou: não se trata de pobres, mas empobrecidos. A pobreza não é uma condição, uma identidade, mas o resultado da ação humana, neste caso da organização da sociedade. Ao contrário, as identidades coletivas – campone-ses, sem terra, quilombolas, indígenas -, que buscam superar sua condição de empobrecimento, são alvo de políticas repressoras sejam ideológicas, sejam pelo uso da força.
Esta mania de polarizar dos jornais não alimenta senão uma falsa idéia da organização econômica e política do estado e cria uma falsa separação entre estado e soci-edade. Como se fosse possível separar o anunciante do jornal, daquelas matérias que o editor aprova para serem publicadas. Entende-se: na cena econômica capixaba a perspectiva do “espírito santo em ação” procura reorganizar ideologicamente as relações de poder, requentando as velhas fórmulas como “o salto do Marlim X o andar do Caranguejo”. De quebra o estado é aquele mal necessário ou espantalho que os interesses privados se apropriam para seu uso.
É certo também que a síndrome de “patinho feio” das elites capixabas levou-as a defenderem um modelo colonial de desenvolvimento que não tem outro resul-tado que o fosso entre ricos e pobres. Embora a maté-ria faça crer que os “dois Espírito Santos” estejam se-parados, eles estão em uma relação perversa. Essa é uma velha estória e seus protagonistas sempre procu-ram eles mesmos contá-la para se reinventar dentro dela. Enquanto o modelo colonial de exploração de recursos naturais continua 2025 adentro, eles vão re-inventar novas estórias, novos pobres e novos ricos. Certamente, escapa aos jornalistas que este é um cenário colonial - exploração escravista, migração e exportação de recursos naturais in natura-, que liga as pontas do desenvolvimento e da pobreza.
A incapacidade das elites capixabas promoverem o desenvolvimento da população é abafada pela culpabilização dos pobres em não se desenvolverem e do estado em não distribuir os impostos. Esta retórica coloca em questão a soberania do estado em face de seu papel distributivo dentro da federação, mas ofus-ca outras relações que escapam do rótulo “político”. A falta de controle do estado sobre os recursos naturais, como a água e a terra, em alguns municípios do norte, é um exemplo da maneira como a lógica colonial os torna distante do ideal "autossustentáveis".
De quebra, o velho racismo que escapa. Uma anciã negra é apresentada na capa do jornal com a legenda “retrato do atraso” ao lado das máquinas, que repre-sentam o “aqui deu certo”. Eu senti uma tristeza por ver meu povo sendo retratado assim, quando sa-bemos que as elites capixabas não medem esforços para apagar – física e culturalmente - a população ne-gra neste estado. Haja vista que na emissora dona do referido jornal, os finais de semana frios têm sido re-servados a mostrar a pujança (e triunfo?) da cultura européia. Somos todos mestiços, mas apenas em certas circunstâncias, onde o muito é bem pouco.

Um comentário:

Thiago Pissimilio disse...

Olá Sandro!
parabéns pelo texto.
Como sempre muito lúcido na sua forma especial de enxergar as entrelinhas...

Usei seu texto na sala de aula!

Abração e sucesso!